quinta-feira, 12 de julho de 2018

O Conto da Aia: Um manual para entender o fascismo


Por A Rosa

O livro “O Conto da Aia” (“The Handmaid’s Tale”, no original) de 1985 foi escrito por Margaret Atwood e adaptado para o cinema na década de 90. Recentemente, tornou-se o centro de diversos debates com a sua nova adaptação no formato de série. Nessa história, o mundo está enfrentando uma crise de infertilidade. Os EUA são tomados por um regime fascista chamado Gilead. Basicamente, a extrema-direita conservadora tomou o poder. Assim surge a República de Gilead. Sociedades distópicas ou pós-apocalípticas não são novidade. Ainda assim, “O Conto da Aia” obteve grande repercussão. A série chamou a atenção por dialogar tão bem com nossa História, tanto passada quanto atual. [1] Na verdade, é difícil assistir algum dos episódios e não sentir aquele frio subindo seu corpo. É uma distopia tão real ao ponto de causar desconforto. Enquanto assistia a série, não teve um momento sequer em que pensei, aliviada, “é apenas ficção”. Em menor ou maior escala, dependendo do contexto histórico, político e social, a sociedade apresentada em “O Conto da Aia” não apenas já existiu, como ainda existe. A autora pesquisou sobre acontecimentos reais para escrever a obra, capturando também o espírito reacionário da época e que perdura até os dias atuais, como revelou em entrevista. [2]

A série elabora um passo a passo de como o regime teocrático e patriarcal de Gilead nasceu e cresceu até tomar o poder. [3] Além disso, relembra o perigo de ignorar a ameaça fascista, acreditando que isso não poderia acontecer nos dias de hoje. Pode e está acontecendo. [4] Não se trata de algo do passado distante, muito pelo contrário, esse tipo de pensamento é justamente o deslize do qual o fascismo se aproveita. Pode parecer um absurdo agora, mas dada as necessárias circunstâncias, o fascismo vai se enraizando até tornar-se algo normal, que é justamente a transição apresentada pela série. As pessoas não perceberão até que seja tarde demais. O fascismo surge em momentos de crise, buscando retornar ao que era considerado a “ordem natural” da sociedade. Minorias sociais e pessoas que não se conformam com o regime são “degenerados” no olhar de Gilead, assim como na Alemanha nazista. [5] Na entrevista citada anteriormente, a autora também comenta sobre as injustiças sofridas pelas mulheres e LGBTs e como isso reflete em sua obra. Essas pessoas são vistas como uma categoria de subgente, ou sequer são vistas como seres humanos, logo não precisam de direitos, incluindo o direito à vida. Esse tipo de regime é uma versão mais radical do sistema de exploração em que vivemos, onde minorias já são tratadas como subgente. [6]

A série também lembra da importância da consciência de classe. A personagem Serena Joy Waterford encontra-se cerceada pelo mesmo regime que ajudou a criar. [7] Por ser uma mulher, ela também é afetada pela sociedade patriarcal de Gilead e por isso é possível sentir empatia por ela em determinados momentos. Entretanto, ela também é uma integrante da classe dominante. Inclusive, orquestrou junto com o marido os ataques terroristas que levaram à ascensão da República de Gilead. Ela e as outras mulheres da classe dominante demonstram sem remorso seu poder de classe, contribuindo tanto indiretamente quando diretamente aos abusos físicos e psicológicos sofridos pelas aias. É a luta de classes dentro desse universo. Não existe sororidade entre burguesa e proletária. Essas pessoas trabalham ativamente pela manutenção da classe dominante, pois é a classe da qual fazem parte. Seriam as equivalentes à Hillary Clinton, Margaret Thatcher, Fernando Holliday, Barack Obama, entre outras pessoas que, apesar de fazerem parte de minorias sociais, trabalham a favor da ideologia dominante. Servem como uma representação simbólica, mas não substantiva. [8] [9] É verdade que nunca se deve colocar as opressões em segundo plano, como muitos ditos “revolucionários” o fazem, mas ao mesmo tempo é um erro fatal acreditar numa suposta representatividade sem substância real. Essas análises devem ser feitas em conjunto. A consciência de classe precisa andar de mãos dadas com as outras opressões, levando em conta todo um contexto histórico e político.

Além disso, a ideologia Gilead é apresentada como sendo tão hipócrita quanto a ideologia burguesa da nossa sociedade. Os homens da classe dominante entregam-se de braços abertos aos mesmos atos que consideram como degeneração: tendo relações com diversas mulheres em bordéis, fora do casamento, às vezes engajando num relacionamento com a própria aia, além de usarem drogas, assim como os defensores dos “valores tradicionais” e da “família tradicional” em nossa realidade. A hipocrisia da ideologia dominante pode ser exposta com uma rápida pesquisa. [10] [11] [12] Contudo, esses fatos não deveriam causar surpresa ou espanto, pois Lenin já vem nos avisando há um século: “A que ponto os mentirosos e os hipócritas, os imbecis e os cegos, os burgueses e seus defensores enganam o povo falando-lhe de liberdade, de igualdade, de democracia em geral!”. [13]

Por fim, as pessoas vão se revoltar contra o regime fascista. Assim como na História os soviéticos lutaram contra os nazistas, os cubanos contra os imperialistas norte-americanos e os africanos contra os colonialitas, as aias e outros rebeldes uniram-se e organizaram-se para construir sua própria rede de resistência. Como a personagem principal, “Offred”, apontou em um dos episódios: "A culpa é deles. Nunca deveriam ter nos dado uniformes se não queriam que fôssemos um exército".

“O Conto da Aia” é muito mais do que uma lição sobre a ascensão do fascismo, é um aviso.

Nolite te Bastardes Carborundorum.

NOTAS

[1] http://www.inannaeducacao.com/single-post/2017/08/18/O-conto-da-Aia-e-o-fundamentalismo-político-religioso
[2] https://medium.com/@ericaprado/margaret-atwood-o-conto-da-aia-a-marcha-das-mulheres-direitos-de-pessoas-trans-e-mais-e61993b3732b
[3] https://www.youtube.com/watch?v=C0rRgyMMSZM
[4] http://www.bbc.com/portuguese/internacional-40910927
[5] https://www.facebook.com/CamaradaRosa/photos/a.321310404956135.1073741829.311130325974143/348081862278989/?type=3&theater
[6] https://www.youtube.com/watch?v=uTs1JPQEkSg
[7] https://www.wired.com/2017/05/handmaids-tale-recap-6/
[8] http://makaveliteorizando.blogspot.com.br/2017/01/obama-e-as-ilusoes-do-simbolico.html
[9] https://www.youtube.com/watch?v=lyhADZjmJwg
[10] http://www.huffpostbrasil.com/2017/07/21/homens-cristaos-sao-mais-hipocritas-sobre-pornografia-diz-estud_a_23042044/
[11] https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/06/19/O-que-os-dados-de-uma-década-dizem-sobre-o-consumo-de-pornô-na-internet
[12] http://www.esquerdadiario.com.br/Vamos-falar-sobre-o-tesao-com-travestis
[13] https://www.marxists.org/portugues/lenin/1919/11/06.htm

Fonte: https://www.facebook.com/CamaradaRosa/photos/a.321312588289250.1073741831.311130325974143/371007956653046/?type=3&theater

Nenhum comentário:

O Conto da Aia: Um manual para entender o fascismo


Por A Rosa

O livro “O Conto da Aia” (“The Handmaid’s Tale”, no original) de 1985 foi escrito por Margaret Atwood e adaptado para o cinema na década de 90. Recentemente, tornou-se o centro de diversos debates com a sua nova adaptação no formato de série. Nessa história, o mundo está enfrentando uma crise de infertilidade. Os EUA são tomados por um regime fascista chamado Gilead. Basicamente, a extrema-direita conservadora tomou o poder. Assim surge a República de Gilead. Sociedades distópicas ou pós-apocalípticas não são novidade. Ainda assim, “O Conto da Aia” obteve grande repercussão. A série chamou a atenção por dialogar tão bem com nossa História, tanto passada quanto atual. [1] Na verdade, é difícil assistir algum dos episódios e não sentir aquele frio subindo seu corpo. É uma distopia tão real ao ponto de causar desconforto. Enquanto assistia a série, não teve um momento sequer em que pensei, aliviada, “é apenas ficção”. Em menor ou maior escala, dependendo do contexto histórico, político e social, a sociedade apresentada em “O Conto da Aia” não apenas já existiu, como ainda existe. A autora pesquisou sobre acontecimentos reais para escrever a obra, capturando também o espírito reacionário da época e que perdura até os dias atuais, como revelou em entrevista. [2]

A série elabora um passo a passo de como o regime teocrático e patriarcal de Gilead nasceu e cresceu até tomar o poder. [3] Além disso, relembra o perigo de ignorar a ameaça fascista, acreditando que isso não poderia acontecer nos dias de hoje. Pode e está acontecendo. [4] Não se trata de algo do passado distante, muito pelo contrário, esse tipo de pensamento é justamente o deslize do qual o fascismo se aproveita. Pode parecer um absurdo agora, mas dada as necessárias circunstâncias, o fascismo vai se enraizando até tornar-se algo normal, que é justamente a transição apresentada pela série. As pessoas não perceberão até que seja tarde demais. O fascismo surge em momentos de crise, buscando retornar ao que era considerado a “ordem natural” da sociedade. Minorias sociais e pessoas que não se conformam com o regime são “degenerados” no olhar de Gilead, assim como na Alemanha nazista. [5] Na entrevista citada anteriormente, a autora também comenta sobre as injustiças sofridas pelas mulheres e LGBTs e como isso reflete em sua obra. Essas pessoas são vistas como uma categoria de subgente, ou sequer são vistas como seres humanos, logo não precisam de direitos, incluindo o direito à vida. Esse tipo de regime é uma versão mais radical do sistema de exploração em que vivemos, onde minorias já são tratadas como subgente. [6]

A série também lembra da importância da consciência de classe. A personagem Serena Joy Waterford encontra-se cerceada pelo mesmo regime que ajudou a criar. [7] Por ser uma mulher, ela também é afetada pela sociedade patriarcal de Gilead e por isso é possível sentir empatia por ela em determinados momentos. Entretanto, ela também é uma integrante da classe dominante. Inclusive, orquestrou junto com o marido os ataques terroristas que levaram à ascensão da República de Gilead. Ela e as outras mulheres da classe dominante demonstram sem remorso seu poder de classe, contribuindo tanto indiretamente quando diretamente aos abusos físicos e psicológicos sofridos pelas aias. É a luta de classes dentro desse universo. Não existe sororidade entre burguesa e proletária. Essas pessoas trabalham ativamente pela manutenção da classe dominante, pois é a classe da qual fazem parte. Seriam as equivalentes à Hillary Clinton, Margaret Thatcher, Fernando Holliday, Barack Obama, entre outras pessoas que, apesar de fazerem parte de minorias sociais, trabalham a favor da ideologia dominante. Servem como uma representação simbólica, mas não substantiva. [8] [9] É verdade que nunca se deve colocar as opressões em segundo plano, como muitos ditos “revolucionários” o fazem, mas ao mesmo tempo é um erro fatal acreditar numa suposta representatividade sem substância real. Essas análises devem ser feitas em conjunto. A consciência de classe precisa andar de mãos dadas com as outras opressões, levando em conta todo um contexto histórico e político.

Além disso, a ideologia Gilead é apresentada como sendo tão hipócrita quanto a ideologia burguesa da nossa sociedade. Os homens da classe dominante entregam-se de braços abertos aos mesmos atos que consideram como degeneração: tendo relações com diversas mulheres em bordéis, fora do casamento, às vezes engajando num relacionamento com a própria aia, além de usarem drogas, assim como os defensores dos “valores tradicionais” e da “família tradicional” em nossa realidade. A hipocrisia da ideologia dominante pode ser exposta com uma rápida pesquisa. [10] [11] [12] Contudo, esses fatos não deveriam causar surpresa ou espanto, pois Lenin já vem nos avisando há um século: “A que ponto os mentirosos e os hipócritas, os imbecis e os cegos, os burgueses e seus defensores enganam o povo falando-lhe de liberdade, de igualdade, de democracia em geral!”. [13]

Por fim, as pessoas vão se revoltar contra o regime fascista. Assim como na História os soviéticos lutaram contra os nazistas, os cubanos contra os imperialistas norte-americanos e os africanos contra os colonialitas, as aias e outros rebeldes uniram-se e organizaram-se para construir sua própria rede de resistência. Como a personagem principal, “Offred”, apontou em um dos episódios: "A culpa é deles. Nunca deveriam ter nos dado uniformes se não queriam que fôssemos um exército".

“O Conto da Aia” é muito mais do que uma lição sobre a ascensão do fascismo, é um aviso.

Nolite te Bastardes Carborundorum.

NOTAS

[1] http://www.inannaeducacao.com/single-post/2017/08/18/O-conto-da-Aia-e-o-fundamentalismo-político-religioso
[2] https://medium.com/@ericaprado/margaret-atwood-o-conto-da-aia-a-marcha-das-mulheres-direitos-de-pessoas-trans-e-mais-e61993b3732b
[3] https://www.youtube.com/watch?v=C0rRgyMMSZM
[4] http://www.bbc.com/portuguese/internacional-40910927
[5] https://www.facebook.com/CamaradaRosa/photos/a.321310404956135.1073741829.311130325974143/348081862278989/?type=3&theater
[6] https://www.youtube.com/watch?v=uTs1JPQEkSg
[7] https://www.wired.com/2017/05/handmaids-tale-recap-6/
[8] http://makaveliteorizando.blogspot.com.br/2017/01/obama-e-as-ilusoes-do-simbolico.html
[9] https://www.youtube.com/watch?v=lyhADZjmJwg
[10] http://www.huffpostbrasil.com/2017/07/21/homens-cristaos-sao-mais-hipocritas-sobre-pornografia-diz-estud_a_23042044/
[11] https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/06/19/O-que-os-dados-de-uma-década-dizem-sobre-o-consumo-de-pornô-na-internet
[12] http://www.esquerdadiario.com.br/Vamos-falar-sobre-o-tesao-com-travestis
[13] https://www.marxists.org/portugues/lenin/1919/11/06.htm

Fonte: https://www.facebook.com/CamaradaRosa/photos/a.321312588289250.1073741831.311130325974143/371007956653046/?type=3&theater