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Publicado por ICultGen
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Ao mesmo tempo em que metodicamente compilava a história do Império Romano, Gibbon complementava seu livro com irreverentes notas, comentando indiscrições sexuais de personagens importantes ou adicionando suas impressões pessoais sobre o assunto em comento – como o faz, por exemplo, ao discorrer sobre Bernard de Clairvaux (9) e acerca do processo de castração pelo qual passavam alguns monges cristãos que buscavam permanecer castos e puros (10).
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Minha particular favorita é a história de Santa Beryl, no Belas Maldições, de Terry Pratchett e Neil Gaiman.
Santa Beryl Articulata de Cracóvia, de quem se diz ter sido martirizada em meados do século V. Segundo a lenda, Beryl era uma jovem que foi entregue como noiva contra a sua vontade a um pagão, o Príncipe Casimir. Em sua noite de núpcias, ela rezou para o Senhor interceder, esperando vagamente que uma barba milagrosa aparecesse, e na verdade ela já tinha à mão uma pequena navalha de cabo de marfim, adequada para damas, especialmente para essa eventualidade; em vez disso, o Senhor garantiu a Beryl a habilidade milagrosa de falar ininterruptamente sobre o que lhe viesse à mente, por mais inconseqüente que fosse, sem pausa para respirar ou comer.Segundo uma versão da lenda, Beryl foi estrangulada pelo Príncipe Casimir três semanas após o casamento, sem consumar as núpcias. Ela morreu virgem e mártir, matraqueando até o fim.Segundo outra versão da lenda, Casimir comprou um par de tampões de ouvido, e ela morreu na cama, com ele, aos sessenta e dois anos.A Ordem Faladeira de Santa Beryl tem o voto de imitar Santa Beryl em todos os momentos, exceto nas tardes de terça-feira, por meia hora, quando as freiras recebem permissão de se calar e, se desejarem, jogar pingue-pongue.(11)
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Na mesma linha, temos o irlandês Flann O’Brien, autor de O Terceiro Tira, cujas extensas notas supostamente escritas pelo filósofo de Selby, narrador da história, adicionam ao tom absurdo do livro e servindo como sátira ao pedantismo dos debates acadêmicos.
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Não posso me esquecer também de T. H. White, com quem tive intensas lições de cavalaria e falcoaria nos volumes que compõem a série O Único e Eterno Rei – explicações detalhadas, que fora do texto principal, ajudavam a dar o gosto da época, dos costumes, tornando ainda mais completa a experiência de ler sua obra.
Assim, as notas de rodapé podem ser uma glosa, um auxílio à compreensão e interpretação de determinado texto; um comentário pessoal do autor e do tradutor, compartilhando sua própria experiência com o leitor; uma história dentro da história ou ainda uma porta de entrada ao conhecimento.
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Perdi a conta do número de vezes em que, após ter visto um comentário numa nota de rodapé, fui pesquisar para saber mais sobre o assunto (12); algumas notas de rodapé me apresentaram a outros livros e outros autores, a outros países, a outros folclores e lendas, a outras culturas.
E não é essa a função principal das notas de rodapé: passar informações aos leitores?
Que conclusão podemos agora tirar dessa história? Bem, da próxima vez que estiver lendo algum livro ou artigo e se deparar com uma notinha no final da página, pense duas vezes antes de ignorar aquelas poucas linhas como se fossem supérfluos sem importância. Elas até podem não mudar sua vida de forma total e irrevogável, mas certamente vão te oferecer alguma coisa – conhecimento afinal, nunca é demais.
1- Peraí, peraí… é negrito no nome do autor, itálico no título e normal no resto ou isso era ano passado???
2- Ou atiçar.
3- Ou papiro, tábuas cuneiformes e variantes…
4- Que já estava lá, é claro… mas você não prestou atenção.
5- Porque a história das notas de rodapé é suficientemente importante para ter gente que estuda e escreve só sobre isso. Eu encontrei pelo menos uns três livros sobre o assunto quando estava pesquisando.
6- Isso era intriga da oposição, mais especificamente, dos renascentistas.
7- De rodapé ou escrita pelos lados, em qualquer canto disponível da página, vertical ou horizontal
8- GRAFTON, Anthony. The footnote: a curious history. Harvard University Press, 1997, p. 2.
9- Abade de Claraval na França foi uma personalidade extremamente influente na Europa do século XII, canonizado em 1174.
10- “Como era de sua prática geral interpretar as Escrituras como alegorias, parece-me desafortunado que, neste aspecto apenas, ele tenha adotado o sentido literal.”
11- GAIMAN, Neil. PRATCHETT, Terry. Belas Maldições: as belas e precisas profecias de Agnes Nutter, bruxa. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 24-25.
12- Em especial nos livros do Umberto Eco, que sempre me deixam com a sensação socrática de que “só sei que nada sei”.
13- O que, você nunca assistiu a “Indiana Jones e a Última Cruzada”? Não sabe que o Graal é a taça mais inconspícua de todas?
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