domingo, 3 de setembro de 2023

Sobre o amor de adestramento.

 


O amor de adestramento nem sempre se apresenta através da ira e da raiva
Não, é através do carinho, da voz mansa que ele se fortalece, dizendo com calma: sua liberdade me faz mal, você é irresponsável quando deixa de me obedecer, quando quer decidir por si mesmo aquilo que faz sentido ou não para seu corpo
E nessa sedução coercitiva, a gente até pensa: o que custa eu abrir mão disso? E daquilo? E daquilo outro? Gosto tanto dessa pessoa, vou fazer isso, não vai custar nada.
E por um tempo você pode até esquecer que não tem liberdade, que só tem a escolha de dizer sim, porque pode ser que em alguns momentos coincida que o lugar onde você está preso é mesmo onde você e com quem quer estar.
O adestramento, se bem internalizado, te orienta mesmo quando o adestrador não está em sua presença, você segue certinho na linha, esperando a recompensa por ser uma boa moça, um bom moço.
A voracidade do amor de adestramento não se contenta com pouco, nem com muito, vai sempre erguendo mais e mais o muro, aumentando a cada dia as exigências: quanto mais você recua, mais ele avança.
"(...) O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta.
Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra (...) João Cabral de Melo Neto.
Mas em algum momento esse cimento vai rachando e os pensamentos silenciados vão ficando mais e mais incômodos
E você começa a cogitar: e se eu vivesse de outro jeito? E se eu amasse de outra forma? Será que existe outro caminho além desse?
E te dá vontade de ir embora
para um reencontro consigo.

Referência desse texto e da vida <3 livro de Mestre Bispo "A terra dá, a terra quer", Ubu Editora

Geni Nuñez - @genipapos no Instagram
Assista a live “Descatequizar para descolonizar”, com Geni Nuñez em meu canal no Youtube (Angela Natel) -
https://www.youtube.com/watch?v=mhtXVH-kO3I&t=2113s


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Sobre o amor de adestramento.

 


O amor de adestramento nem sempre se apresenta através da ira e da raiva
Não, é através do carinho, da voz mansa que ele se fortalece, dizendo com calma: sua liberdade me faz mal, você é irresponsável quando deixa de me obedecer, quando quer decidir por si mesmo aquilo que faz sentido ou não para seu corpo
E nessa sedução coercitiva, a gente até pensa: o que custa eu abrir mão disso? E daquilo? E daquilo outro? Gosto tanto dessa pessoa, vou fazer isso, não vai custar nada.
E por um tempo você pode até esquecer que não tem liberdade, que só tem a escolha de dizer sim, porque pode ser que em alguns momentos coincida que o lugar onde você está preso é mesmo onde você e com quem quer estar.
O adestramento, se bem internalizado, te orienta mesmo quando o adestrador não está em sua presença, você segue certinho na linha, esperando a recompensa por ser uma boa moça, um bom moço.
A voracidade do amor de adestramento não se contenta com pouco, nem com muito, vai sempre erguendo mais e mais o muro, aumentando a cada dia as exigências: quanto mais você recua, mais ele avança.
"(...) O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta.
Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra (...) João Cabral de Melo Neto.
Mas em algum momento esse cimento vai rachando e os pensamentos silenciados vão ficando mais e mais incômodos
E você começa a cogitar: e se eu vivesse de outro jeito? E se eu amasse de outra forma? Será que existe outro caminho além desse?
E te dá vontade de ir embora
para um reencontro consigo.

Referência desse texto e da vida <3 livro de Mestre Bispo "A terra dá, a terra quer", Ubu Editora

Geni Nuñez - @genipapos no Instagram
Assista a live “Descatequizar para descolonizar”, com Geni Nuñez em meu canal no Youtube (Angela Natel) -
https://www.youtube.com/watch?v=mhtXVH-kO3I&t=2113s