segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Para além da ilusão biográfica: outros modos de acolhermos nossas histórias e transformações psicossociais.

 


Todes nós, em alguma medida, temos ilusões biográficas.
No tempo linear, aprendemos que a "verdade" só estaria no imutável, que ele seria o critério do quão confiável seria algo ou alguém.

Talvez por isso, admitir que em algum tempo fomos, sentimos e pensamos de modo diferente do que somos hoje pode acabar sendo um grande desafio.
Às vezes, reconhecer que "nem sempre" fomos e agimos como hoje, traz vergonha e culpa.
Em outros momentos, apelamos para essa suposta linearidade de nossas vidas para fazermos mais sentido aos nossos interlocutores e a nós mesmos, às cobranças (justas ou não) que recebemos.
Para lidar com isso, lançamos mão de estratégias como a ilusão biográfica (conceito de Bordieu, que aqui uso em outro sentido).
Nela, editamos toda nossa vida, desde a infância ao presente, à luz do argumento que gostaríamos de fortalecer ou defender em algum contexto.
Nem sempre isso é feito de modo consciente e a intenção aqui não é moralizar esse gesto, mas compreender seus efeitos.
Quando dissemos o "sempre fui assim", talvez estejamos tentando aumentar a validade de nossa demanda, em um complemento oculto que diz "se sempre fui assim, sempre serei".
Recorrendo, portanto, àquela noção de verdade e confiança como características da imutabilidade.
Ainda que essa possa ser uma estratégia, talvez seja importante experenciarmos outras temporalidades que acolham nossas incoerências e descaminhos, dizendo: nem sempre fui assim, porém agora é o que faz mais sentido pra mim, isso torna meu presente menos válido?
Só posso acreditar naquilo que sempre acreditei?
O que vivemos antes é muito menos encadeado de sentido linear do que imaginamos.
Talvez acolhendo essas descontinuidades (Foucault) consigamos exercitar um maior acolhimento com nossas próprias histórias e com as do outro.
Entendendo que quem foi, desejou, sentiu e prometeu determinada coisa pode não ter mentido antes, nem estar mentindo agora em sua mudança.
Não é mentira porque mudou, talvez justamente porque tenha se transformado que é verdadeiro.
Que todes tenham o direito à mudança, desde que ela seja ética, não exploratória ou expropriadora do que não lhe cabe.

Geni Nuñez - @genipapos no Instagram
Assista a live "Descatequizar para Descolonizar", com Geni Nuñez em meu canal do Youtube (Angela Natel), na playlist "Só lives" - acesse o canal pelo link da minha Bio - https://www.youtube.com/watch?v=mhtXVH-kO3I&t=2115s


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Para além da ilusão biográfica: outros modos de acolhermos nossas histórias e transformações psicossociais.

 


Todes nós, em alguma medida, temos ilusões biográficas.
No tempo linear, aprendemos que a "verdade" só estaria no imutável, que ele seria o critério do quão confiável seria algo ou alguém.

Talvez por isso, admitir que em algum tempo fomos, sentimos e pensamos de modo diferente do que somos hoje pode acabar sendo um grande desafio.
Às vezes, reconhecer que "nem sempre" fomos e agimos como hoje, traz vergonha e culpa.
Em outros momentos, apelamos para essa suposta linearidade de nossas vidas para fazermos mais sentido aos nossos interlocutores e a nós mesmos, às cobranças (justas ou não) que recebemos.
Para lidar com isso, lançamos mão de estratégias como a ilusão biográfica (conceito de Bordieu, que aqui uso em outro sentido).
Nela, editamos toda nossa vida, desde a infância ao presente, à luz do argumento que gostaríamos de fortalecer ou defender em algum contexto.
Nem sempre isso é feito de modo consciente e a intenção aqui não é moralizar esse gesto, mas compreender seus efeitos.
Quando dissemos o "sempre fui assim", talvez estejamos tentando aumentar a validade de nossa demanda, em um complemento oculto que diz "se sempre fui assim, sempre serei".
Recorrendo, portanto, àquela noção de verdade e confiança como características da imutabilidade.
Ainda que essa possa ser uma estratégia, talvez seja importante experenciarmos outras temporalidades que acolham nossas incoerências e descaminhos, dizendo: nem sempre fui assim, porém agora é o que faz mais sentido pra mim, isso torna meu presente menos válido?
Só posso acreditar naquilo que sempre acreditei?
O que vivemos antes é muito menos encadeado de sentido linear do que imaginamos.
Talvez acolhendo essas descontinuidades (Foucault) consigamos exercitar um maior acolhimento com nossas próprias histórias e com as do outro.
Entendendo que quem foi, desejou, sentiu e prometeu determinada coisa pode não ter mentido antes, nem estar mentindo agora em sua mudança.
Não é mentira porque mudou, talvez justamente porque tenha se transformado que é verdadeiro.
Que todes tenham o direito à mudança, desde que ela seja ética, não exploratória ou expropriadora do que não lhe cabe.

Geni Nuñez - @genipapos no Instagram
Assista a live "Descatequizar para Descolonizar", com Geni Nuñez em meu canal do Youtube (Angela Natel), na playlist "Só lives" - acesse o canal pelo link da minha Bio - https://www.youtube.com/watch?v=mhtXVH-kO3I&t=2115s