O Poder da Vagina e a História dos Símbolos Cristãos
Vi o símbolo da vagina na parte de trás de um carro outro
dia. Vi também um em um cartão de visita, um colar, um boletim da igreja e até
mesmo numa Bíblia. As vaginas estão por toda parte! As pessoas devem realmente
amar a sexualidade feminina.
É claro que estou falando do símbolo do peixe.
O icthys em forma de vulva ou "peixe de Jesus"
já foi um símbolo “pagão”, proeminente, representando uma denominada “Deusa da
fertilidade” pré-cristã: desde Atargatis, Afrodite e Artemis, até muitas outras
que não seguem minha linha de aliteração, por isso vamos ignorá-las por
enquanto.
O sincretismo cristão inicial envolvia tomar os símbolos “pagãos”
existentes e dar-lhes um novo significado. Um exemplo disso é com a antiga Deusa
Asherah que era adorada na Terra Santa durante o tempo dos primeiros
israelitas. Karen Garst, editora da revista Women Beyond Belief, faz uma
breve história sobre Asherah, a antiga Deusa da nova vida, e seu símbolo, a
serpente, que descama sua pele para demonstrar regeneração.
Serpentes e Divindades femininas eram frequentemente vistas
juntas. Na verdade, o hieróglifo egípcio para a palavra "Deusa" é uma
imagem de uma serpente. Garst's faz uma boa observação: "Que melhor
maneira de abater esta adoração de Deusa do que retratar o diabo usando um
símbolo clássico associado a ela"? Na verdade, que melhor maneira de
mostrar que as mulheres são de alguma forma más?
Assim como com a serpente, o cristianismo assumiu o símbolo “pagão”
da fertilidade dos ichthys e o torceu para representar uma religião que
acabou promovendo a subjugação das mulheres e as culpou por tudo de errado no
mundo. Adorável.
O ichthys cristão é um retroacrônico, ou seja, uma
sigla aplicada a uma palavra já existente, como quando Calvin, nas tirinhas de
Calvin e Hobbes fez com que a palavra "gross" (grosseira) significasse
Get Rid Of Slimey girlS (Livres-se das
Garotinhas). Da mesma forma, os cristãos torceram ichthys (ἸΧΘΥΣ) em Ἰησοῦς
Χριστός, Θεοῦ Υἱός, Σωτήρ ou Jesus Cristo,
Filho de Deus, Salvador.
Mas ichthys é também a palavra grega para peixe, que era
um nome apropriado do filho da Deusa dos peixes, Atargatis. Como o culto a
Atargatis é obviamente anterior ao cristianismo, ele detém os direitos sobre o
símbolo. Enquanto ideias e linguagem podem ser emprestadas por outras culturas,
o cristianismo foi um passo além ao tomar a propriedade intelectual dos
adoradores de Deusas e subverter completamente o símbolo em algo antitético a ele.
"[O ichthys] era tão reverenciado em todo o
império romano que as autoridades cristãs insistiram em assumi-lo, com uma
revisão extensiva dos mitos para negar seus antigos significados
feminino-genitais". The
Woman's Encyclopaedia of Myths and Secrets de B. G. Walker, p.314.
Imagine se uma religião conquistadora viesse e pegasse nosso
símbolo para amor, o coração, e decidisse que agora era o símbolo de seus Deuses
do ódio. "Eu <3 você", passaria então a significar "Eu te
desprezo em nome dos Deuses do ódio". É essa aplicação de sentido
retrógrado grave que torna seu uso quase um ato de intimidação. Quanto pior,
porém, quando um símbolo sexual de feminilidade é roubado sem o consentimento
de uma religião androcêntrica?
Contrariando um mundo centrado na mulher
Na antiga Éfeso, Artemis (que às vezes era confundida com
Cybele) era retratada com este símbolo de peixe familiar sobre seus genitais.
Ela era a origem de toda a vida, mas dizia-se que o pecado tinha entrado no
mundo através dos Deuses masculinos ao seu redor; não através de um ser humano,
e certamente não através de uma mulher. Ao contrário do culto de Yahweh
centrado nos homens por todos os sacerdotes masculinos, as sacerdotisas de
Artemis eram principalmente mulheres, ou homens que haviam renunciado a sua masculinidade,
que falavam com autoridade religiosa. Esta cultura era tão proeminente que os
primeiros missionários (cristãos de fora) foram a extremos misóginos para
combatê-la.
Considere a epístola pastoral de Timóteo, que foi escrita de
Éfeso:
"Não permito que uma mulher ensine ou assuma autoridade
sobre um homem; ela deve ficar quieta". Pois Adão foi formado primeiro,
depois Eva. E Adão não foi o enganado; foi a mulher que foi enganada e se
tornou uma pecadora".
Você quase pode ver o autor desta carta (a maioria dos
estudiosos colocaria 1 Timoteo entre as epístolas pseudônimas) pisando em seu
pé enquanto ele exige esta inversão não só da religião nativa, mas também da
ordem natural. Ao invés do homem vindo da mulher, agora a mulher vem de um
homem.
O empoderamento feminino foi provavelmente visto como
perigoso para o cristianismo. Éfeso, uma cidade que uma vez foi fundada e
governada por mulheres guerreiras, começou a ver um declínio acentuado no
status da mulher depois que o cristianismo explodiu pela cidade. Os cristãos
inspirados por estas palavras continuariam a destruir o templo de Artemis, suas
imagens e sua estátua maciça. Uma inscrição cristã no local explica porque
encontramos tão poucos resquícios:
"Destruindo a imagem ilusória do demônio Artemis,
Demeas ergueu este símbolo da Verdade, o Deus que afasta os ídolos, e a Cruz
dos sacerdotes, sinal imortal e vitorioso de Cristo".
Os “ídolos” das Deidades femininas “de fertilidade” são tão
antigos que muitas vezes são chamados figuras de Vênus, mas são anteriores à Deusa
Vênus. A “Vênus” de Willendorf, por exemplo, foi estimada em 28.000 AEC. A
humanidade vem venerando a vagina, a vulva e os poderes de nascimento das
mulheres desde a era Paleolítica! Em contraste, o judaísmo tem apenas cerca de
3.000 anos de idade, e lançamento, o cristianismo, um juvenil de 2.000 anos.
Apesar de tudo isso, restos do símbolo da fertilidade ainda
sobreviveram dentro do culto cristão através da veneração a Maria, a mãe de
Jesus. A acadêmica B.G. Walker apontou,
"Às vezes a criança Cristo era retratada dentro das vísceras
[ichthys], que se sobrepunham à barriga de Maria e obviamente
representava seu ventre, assim como no antigo simbolismo da Deusa".
(Ênfase e parênteses parentéticos meus).
Em muitos aspectos, Maria tornou-se ela mesma um símbolo de
fertilidade, embora sua fertilidade não tenha sido divorciada de sua agência
sexual, permitindo que a maternidade fosse chamada de sagrada, mas a
sexualidade feminina pecaminosa. Foi assim que me ensinaram, ao crescer, que a
melhor coisa que eu podia fazer era ter filhos, mas a pior coisa que eu podia
fazer era ter sexo fora dos limites do casamento heterossexual, aprovado pela
igreja e governado pelo homem.
Quando sua única Divindade é o homem
Tudo isso para dizer que o medo cristão da sexualidade
feminina certamente não é novidade. Na Idade Média, ela foi literalmente
demonizada. Milhares e milhares de mulheres foram queimadas como bruxas por
ordem dos líderes cristãos da época. O tratado cristão de 1487 sobre bruxaria,
o Malleus Maleficarum, adverte: "Toda bruxaria vem da luxúria
carnal, que na mulher é insaciável".
Os estudiosos Stuart Clark e Robin Briggs nos dizem que
existe um certo binário no pensamento cristão que explica porque as mulheres
eram mais propensas à acusação de feitiçaria:
"Os homens são associados a atributos positivos, então
as mulheres devem ser associadas a seus pares negativos. Se Deus é a encarnação
do bem e o Diabo, é seu oposto polar, então, em conformidade, os homens estão
inatamente mais próximos de Deus e as mulheres do Diabo. Isto é até apoiado
pelo pecado original de Eva em Gênesis da Bíblia".
Isto é o que acontece quando sua única divindade é o
homem.
É claro que nem sempre foi assim. As raízes politeístas do
Antigo Testamento ("Façamos o homem à nossa imagem") ainda são
evidentes. O próprio Yahweh começou como um mero epíteto de El no panteão
cananeu. A adoração de Asherah não desapareceu uma vez que os israelitas se
mudaram, mas ela era conhecida há muito tempo como a esposa de Yashweh, ou a
"Rainha dos Céus", como encontramos no livro de Jeremias. Seus filhos
são os "filhos de Deus" em Gênesis 6 que acasalam com as filhas dos humanos
e criam gigantes (sim, isso está na verdade na Bíblia).
Mais tarde, quando os Deuses e Deusas se transformaram em
uma grande Divindade masculina sob o nome de Yahweh, todos os outros poderes
foram subsumidos em um só ser. É assim que Yahweh pode ter as habilidades de
Asherah, que incluem os poderes tradicionais das mulheres para dar vida. Até
mesmo cristãos proeminentes notaram descrições femininas do Deus bíblico em
suas Escrituras. Parece óbvio para o leitor moderno que Asherah acabou sendo enxotada
de seu texto sagrado para preservar a autoridade masculina.
A maioria dos cristãos não está ciente de que os ichthys
representava originalmente a sexualidade feminina. Hoje eles a colocam em suas
roupas e a penduram em suas igrejas, onde silenciosamente cantam as antigas
canções de empoderamento feminino.
Falando por mim, vejo isso e lembro que em meu corpo está a
carne que os humanos primeiro chamaram de divina. Eu mesma trouxe uma criança
para o mundo através de seus poderes. E enquanto o cristianismo trabalha para
controlar os corpos femininos ainda hoje, milhões de mulheres através da
história gritam através deste símbolo de fertilidade e vida.
Texto de Alexis https://disqus.com/by/disqus_KeeO63CG7G/
Notas da tradutora: o termo ‘pagão’ foi traduzido
entre aspas porque se trata de uma designação cristã no contexto romano para
tudo o que não tivesse sua identificação e, portanto, contém juízo de valor.
A expressão “Deusa da fertilidade” também aparece entre
aspas por se tratar de um reducionismo de gênero no viés das chamadas pesquisas
acadêmicas realizadas por homens.
A termo “ídolo” é traduzido entre aspas porque se trata de
um termo pejorativo com relação a imagens de Divindades de cultos demonizados e/ou
vilanizados.
Sobre a inadequada designação das imagens de Deusas como “Vênus”,
recomendo outro artigo que traduzi Elas não são figuras de “Vênus” em https://angelanatel.wordpress.com/2020/07/25/elas-nao-sao-figuras-de-venus/
Tradução de Angela Natel - https://linktr.ee/angelanatel
[Fonte de imagem: Adobe Stock]
Para saber mais, adquira os cursos:
Curso “Asherah: Deusa de Israel” – para uma luta
anticolonial
Para informações e inscrição: https://angelanatel.wordpress.com/2022/04/06/curso-asherah-deusa-de-israel/
Curso “Bíblia Hebraica: formação e conteúdo (panorama
histórico e literário)” – estudo sobre os textos do Antigo Testamento
Para informações e inscrição: https://angelanatel.wordpress.com/2022/04/02/curso-biblia-hebraica-formacao-e-conteudo-panorama-historico-e-literario/
Curso “Leituras do Novo Testamento: os quatro Evangelhos e a
literatura”
Para informações e inscrição: https://angelanatel.wordpress.com/2022/04/24/curso-leituras-do-novo-testamento-os-quatro-evangelhos-e-a-literatura-3/
Curso “Apocalipse: texto e contexto (sentido e
interpretação)”
Para informações e inscrição: https://angelanatel.wordpress.com/2022/05/16/curso-apocalipse-texto-e-contexto-sentido-e-interpretacao/
Curso: “O panteão ugarítico e a mitologia cananeia: Deuses e
Deusas da Bíblia”
Para informações e inscrição: https://angelanatel.wordpress.com/2022/06/20/curso-o-panteao-ugaritico-e-a-mitologia-cananeia-deuses-e-deusas-da-biblia-4/
Curso: “Metaverso: explorando o livro de Juízes -
Mitologias, tradições, personagens e narrativas na Bíblia”.
Para informações e inscrição: https://angelanatel.wordpress.com/2022/07/17/curso-metaverso-explorando-o-livro-de-juizes/
Curso: “Zacarias: a expulsão da Deusa e o silenciamento
profético”.
Para informações e inscrição:
Curso “Deusas, loucas e feiticeiras: as mulheres nos textos
bíblicos”
Para informações e inscrição:
Curso: “A representação do Mal nas Religiões”
Garanta já seu ingresso: https://www.sympla.com.br/evento-online/a-representacao-do-mal-nas-religioes/1786961
Curso: “O divórcio de Yahweh e a Deusa no Éden”
Garanta já seu ingresso: https://www.sympla.com.br/evento-online/o-divorcio-de-yahweh-e-a-deusa-no-eden/1786975
Texto original em https://www.patheos.com/blogs/removingthefigleaf/2016/11/vagina-power/
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