quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Depoimento sobre como me desliguei das instituições religiosas

 

Não saí das instituições religiosas por causa dos estudos.

Minha saída começou bem antes, foi um processo longo.

Antes mesmo de começar a estudar teologia...

Depois de mais de 20 anos de trabalho “voluntário”

Que mais parece trabalho escravo

Em que a gente abre mão de coisas essenciais

Para parecer que está “produzindo” com a esmola alheia

Sempre dependendo, sempre dizendo ‘amém’, sempre ecoando

A vontade e a verdade de quem pagava pra ver.

Sim, quem paga manda, e não aceita questionamento.

Então cresci num lar violento e narcisista

Onde o nome de Deus é usado para justificar todo tipo de abuso

E só o que somos permitidos a fazer é ‘orar para Deus mudar a situação’

Enquanto apanhamos de novo, de novo e de novo,

Enquanto somos humilhados por quem fala de nós pelas costas

E por manipulações cruéis.

Assim cresci, debaixo de violência física, psicológica, patrimonial.

E isso se estendeu ao casamento, onde essas mesmas violências aconteceram.

E quando saí disso, decidi dar um basta, fui taxada de herege, pecadora, desviada.

Mudei de “igreja”, para uma que não levada em conta meu rótulo recém adquirido.

Mas lá fui constantemente questionada, e os comentários e fofocas só aumentaram.

Comecei a estudar “teologia” numa faculdade da denominação.

Segui sendo doutrinada, porém questionando, começando a desconfiar do vazio das palavras, da incompletude das pesquisas.

Tentei o aprofundamento, busquei mais e além, segui no mestrado, em instituição diferente, e as coisas começaram a aparecer: as incongruências, as manipulações, as meias verdades.

Ainda tentei mudar a instituição pelo lado de dentro, achando que conserto é possível, que há boas intenções. Me dediquei ao treinamento missionário e fui aumentando meu trabalho e alcance. Nesse ponto as sujeiras começaram a aparecer e me vi enredada em corrupção e muitos outros tipos de violência, que não a física. O trabalho escravo continuava, junto a crueldades e controle sobre as vidas, os corpos e as mentes.

Quanto renunciei a vida missionária, ainda tentei trabalhar na faculdade teológica que me formara. Só encontrei condenação, desrespeito, doutrinação e aversão à pesquisa, ainda que houvesse todo um teatro para manter a autorização do MEC.

Me desliguei da igreja porque não encontrava mais um espaço acolhedor e verdadeiro.

E para manter a sanidade, mantive-me nos estudos, a fim de buscar coerência e relevância pra vida.

Ainda tentei caminhar com grupos que não tinham compromisso institucional e se diziam mais humanos. Tentei fazer parcerias com progressistas e líderes dentro de outras teologias. Me vi diante de abusadores, manipuladores e machistas, completamente concentrados nas mesmas estruturas de poder que tanto agora eu evitava.

Me afastei da maior parte daqueles que me machucaram, e agora o que divulgo são trechos de pesquisas, estudos, provocações para fazer pensar e leituras.

Assim me aprofundo nas pesquisas, cada vez mais, tentando deixar um legado.

Não busco mais amor, busco coerência, e ambos são cada vez mais raros de encontrar.

Ainda assim vejo-me destratada por familiares, parentes, pessoas de perto e de longe, ouço fofocas, calúnias, mentiras a meu respeito, e ainda me dizem que preciso amar e perdoar.

Novamente Deus é usado para manter as estruturas de opressão, de violência, e justificar a manutenção da crueldade narcísica.

Não querem viver sua espiritualidade, querem usá-la para controlar as vidas, os corpos e as mentes das pessoas. Querem justificar condenação e preconceito, querem simplesmente se colocar acima dos outros e como donos da verdade.

Hoje, minha fé pessoal não diz respeito a quem se acha com a razão.

Amar não é permitir abuso nem violência.

Amar não é viver sob mentiras, como se nada estivesse acontecendo.

Amar não é não ser capaz de reconhecer o quanto fere, o quanto transforma o outro em alvo de colonização e desumanização.

Assim foi meu processo de desligamento das instituições religiosas, de forma bem resumida.

No momento em que você discorda, destoa, vira herege, um pária.

E assim caminho cada vez mais sozinha, tentando ferir cada vez menos, tentando proteger os outros de mim, e buscando deixar algo que preste para as próximas gerações, quando os rótulos e palavras esmagadoras sobre mim forem finalmente esquecidas.

Angela Natel – 10/08/2021

 

Nenhum comentário:

Depoimento sobre como me desliguei das instituições religiosas

 

Não saí das instituições religiosas por causa dos estudos.

Minha saída começou bem antes, foi um processo longo.

Antes mesmo de começar a estudar teologia...

Depois de mais de 20 anos de trabalho “voluntário”

Que mais parece trabalho escravo

Em que a gente abre mão de coisas essenciais

Para parecer que está “produzindo” com a esmola alheia

Sempre dependendo, sempre dizendo ‘amém’, sempre ecoando

A vontade e a verdade de quem pagava pra ver.

Sim, quem paga manda, e não aceita questionamento.

Então cresci num lar violento e narcisista

Onde o nome de Deus é usado para justificar todo tipo de abuso

E só o que somos permitidos a fazer é ‘orar para Deus mudar a situação’

Enquanto apanhamos de novo, de novo e de novo,

Enquanto somos humilhados por quem fala de nós pelas costas

E por manipulações cruéis.

Assim cresci, debaixo de violência física, psicológica, patrimonial.

E isso se estendeu ao casamento, onde essas mesmas violências aconteceram.

E quando saí disso, decidi dar um basta, fui taxada de herege, pecadora, desviada.

Mudei de “igreja”, para uma que não levada em conta meu rótulo recém adquirido.

Mas lá fui constantemente questionada, e os comentários e fofocas só aumentaram.

Comecei a estudar “teologia” numa faculdade da denominação.

Segui sendo doutrinada, porém questionando, começando a desconfiar do vazio das palavras, da incompletude das pesquisas.

Tentei o aprofundamento, busquei mais e além, segui no mestrado, em instituição diferente, e as coisas começaram a aparecer: as incongruências, as manipulações, as meias verdades.

Ainda tentei mudar a instituição pelo lado de dentro, achando que conserto é possível, que há boas intenções. Me dediquei ao treinamento missionário e fui aumentando meu trabalho e alcance. Nesse ponto as sujeiras começaram a aparecer e me vi enredada em corrupção e muitos outros tipos de violência, que não a física. O trabalho escravo continuava, junto a crueldades e controle sobre as vidas, os corpos e as mentes.

Quanto renunciei a vida missionária, ainda tentei trabalhar na faculdade teológica que me formara. Só encontrei condenação, desrespeito, doutrinação e aversão à pesquisa, ainda que houvesse todo um teatro para manter a autorização do MEC.

Me desliguei da igreja porque não encontrava mais um espaço acolhedor e verdadeiro.

E para manter a sanidade, mantive-me nos estudos, a fim de buscar coerência e relevância pra vida.

Ainda tentei caminhar com grupos que não tinham compromisso institucional e se diziam mais humanos. Tentei fazer parcerias com progressistas e líderes dentro de outras teologias. Me vi diante de abusadores, manipuladores e machistas, completamente concentrados nas mesmas estruturas de poder que tanto agora eu evitava.

Me afastei da maior parte daqueles que me machucaram, e agora o que divulgo são trechos de pesquisas, estudos, provocações para fazer pensar e leituras.

Assim me aprofundo nas pesquisas, cada vez mais, tentando deixar um legado.

Não busco mais amor, busco coerência, e ambos são cada vez mais raros de encontrar.

Ainda assim vejo-me destratada por familiares, parentes, pessoas de perto e de longe, ouço fofocas, calúnias, mentiras a meu respeito, e ainda me dizem que preciso amar e perdoar.

Novamente Deus é usado para manter as estruturas de opressão, de violência, e justificar a manutenção da crueldade narcísica.

Não querem viver sua espiritualidade, querem usá-la para controlar as vidas, os corpos e as mentes das pessoas. Querem justificar condenação e preconceito, querem simplesmente se colocar acima dos outros e como donos da verdade.

Hoje, minha fé pessoal não diz respeito a quem se acha com a razão.

Amar não é permitir abuso nem violência.

Amar não é viver sob mentiras, como se nada estivesse acontecendo.

Amar não é não ser capaz de reconhecer o quanto fere, o quanto transforma o outro em alvo de colonização e desumanização.

Assim foi meu processo de desligamento das instituições religiosas, de forma bem resumida.

No momento em que você discorda, destoa, vira herege, um pária.

E assim caminho cada vez mais sozinha, tentando ferir cada vez menos, tentando proteger os outros de mim, e buscando deixar algo que preste para as próximas gerações, quando os rótulos e palavras esmagadoras sobre mim forem finalmente esquecidas.

Angela Natel – 10/08/2021