sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Espiritualidade irrelevante: cérebro de macaco, espírito de porco

Em dias cujas principais manchetes giram em torno da amputação da vida devida à intolerância, seja na França, na Nigéria ou em qualquer lugar onde a vida e a dignidade humana perderam seu valor prioritário, não me assustam notícias a respeito de afirmações como a mencionada na ilustração – de que os seres humanos não passam de fruto do intercurso de macacos com porcos.
Os primatas há muito são considerados por diversos segmentos da sociedade a raça originária da humanidade. Apesar de suas habilidades capazes de realizar complexas atividades, estes seres ainda estão aquém do que um ser humano é capaz de fazer. Essas limitações se estendem desde o plano físico até o que podemos chamar de espiritualidade ou mística – a busca pelo transcendente.
Quanto aos suínos, sua fama com relação às preferências higiênicas resultou na famosa expressão ‘espírito de porco’ que, de forma básica, pode ser compreendida para se referir a uma pessoa cruel, ranzinza, que se especializa em complicar situações ou em causar constrangimentos .
Devido a essas características, ainda que minha opinião pessoal com relação à afirmação de alguns cientistas não venha agora ao caso, não posso deixar de rir e concordar que nossa espécie está mais para confirmar do que desabonar tal afirmação, principalmente no que diz respeito à espiritualidade.
Qualquer pessoa, independentemente de se dizer crente em algo, lida com o transcendente de acordo com sua cosmovisão – a maneira que interpreta a si mesma e o que a cerca. Para tanto, pode-se autodenominar ateu, monoteísta, politeísta, henoteísta , de acordo com a referência de divindade que possui. Estas questões não deviam nos incomodar tanto, já que o resultado desta espiritualidade individual é que precisa ser refletida de maneira saudável na sociedade como um todo.
Seja a pessoa portadora de convicções e crenças aceitáveis para maioria ou não, todo tipo de espiritualidade precisa ajudá-la na compreensão de si mesma e, principalmente, no trato com o outro (Outro como transcendente ou outro como semelhante, porém diverso de si, para além de si). A espiritualidade que se resume a ritos que se concentrem na satisfação de si mesmo e que tenham como único fim a autoafirmação e reiteração de determinadas crenças e códigos, além de irrelevante pode tornar-se extremamente prejudicial à sociedade.
Dito isto, não cabe aqui estabelecer ou determinar que tipos de espiritualidade são relevantes ou não. Mas é possível, a cada um, exercer uma autocrítica consciente a fim de se policiar nos fins justificativos das ações que exercemos para concretizar esta espiritualidade. Para tanto, pensemos sobre nossas práticas, os locais onde costumamos nos reunir, nossos objetivos pessoais e comuns, os ritos e liturgias que seguimos, os manuais que temos como bases para nosso código de ética pessoal. Estes itens podem sinalizar se o que buscamos e a influência que efetivamente exercemos na sociedade têm sido mais relevantes do que prejudiciais.
Algumas perguntas podem nos ajudar nesse sentido: Será que nossas ‘reuniões’, nossos programas e grupos aos quais pertencemos têm valorizado e proporcionado à vida daquele que é diferente maior dignidade e possibilidade de subsistência? Será que nossos ritos têm nos ajudado a ter maior consciência do outro e de suas necessidades e de como podemos supri-las ou têm apenas reforçado ideias que não saem do plano do discurso vazio? Será que nossa espiritualidade ou maneira de vivenciar o que acreditamos tem nos ajudado a construir uma sociedade livre, com menos armas defensivas contra argumentos e críticas e mais disposição para o diálogo e a busca pela compreensão das razões do outro? Será que os benefícios de nossas crenças são apenas privilégios para os que pensam como nós? Será que não estamos mais propensos a defender nossas ideias do que a vida humana?
A estes questionamentos juntam-se a minha indignação com a atitude de pessoas que usam a própria religiosidade para se autopromover, ao mesmo tempo em que ignoram sua necessidade de estabelecer pontes de relacionamento com aqueles que discordam de suas ideias e posturas. Pessoas que parecem exemplo aos que distante estão, mas que entre familiares subjugam, oprimem, destratam e não são capazes de admitir seus próprios erros. Líderes – religiosos ou não – que impõem a própria vontade a outros, mas que são incapazes de servir aos que julga inferiores a si mesmo sem esperar nenhum tipo de retribuição.
Estes, não tenho receio em afirmar, são os perfeitos protótipos resultantes da coabitação entre macacos e porcos: limitam-se a si mesmos em uma mentalidade defensivamente instintiva e agem de forma cruel com o próximo, a despeito de seu valor intrínseco como ser humano. São cérebros de macaco com espírito de porco ambulantes, santos do paoco , cães que perseguem a própria cauda, cuja vida tem seu fim em si mesmo, sem a mínima intenção de sair perdendo em nada.
E ao surgirem as crises relativas a ataques contra a vida e a dignidade humana, como as que temos presenciado em nossos dias, este tipo de espiritualidade fica mais evidente, quando os ritos não fazem nenhuma diferença, quando as práticas se tornam tão vazias que não constroem nenhum tipo de ponte para a solidariedade – apenas incitam a mais retaliação.
Se minha espiritualidade só me leva a condenar e a ameaçar a vida alheia, ou pior, se esta espiritualidade gira apenas em torno de mim mesma, ignorando o outro e a possibilidade de renunciar minhas necessidades e desejos em favor do próximo, sou obrigada a concordar que não passo do produto de uma mentalidade primata com um espírito suíno.
Angela Natel – 16/01/2015

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Espiritualidade irrelevante: cérebro de macaco, espírito de porco

Em dias cujas principais manchetes giram em torno da amputação da vida devida à intolerância, seja na França, na Nigéria ou em qualquer lugar onde a vida e a dignidade humana perderam seu valor prioritário, não me assustam notícias a respeito de afirmações como a mencionada na ilustração – de que os seres humanos não passam de fruto do intercurso de macacos com porcos.
Os primatas há muito são considerados por diversos segmentos da sociedade a raça originária da humanidade. Apesar de suas habilidades capazes de realizar complexas atividades, estes seres ainda estão aquém do que um ser humano é capaz de fazer. Essas limitações se estendem desde o plano físico até o que podemos chamar de espiritualidade ou mística – a busca pelo transcendente.
Quanto aos suínos, sua fama com relação às preferências higiênicas resultou na famosa expressão ‘espírito de porco’ que, de forma básica, pode ser compreendida para se referir a uma pessoa cruel, ranzinza, que se especializa em complicar situações ou em causar constrangimentos .
Devido a essas características, ainda que minha opinião pessoal com relação à afirmação de alguns cientistas não venha agora ao caso, não posso deixar de rir e concordar que nossa espécie está mais para confirmar do que desabonar tal afirmação, principalmente no que diz respeito à espiritualidade.
Qualquer pessoa, independentemente de se dizer crente em algo, lida com o transcendente de acordo com sua cosmovisão – a maneira que interpreta a si mesma e o que a cerca. Para tanto, pode-se autodenominar ateu, monoteísta, politeísta, henoteísta , de acordo com a referência de divindade que possui. Estas questões não deviam nos incomodar tanto, já que o resultado desta espiritualidade individual é que precisa ser refletida de maneira saudável na sociedade como um todo.
Seja a pessoa portadora de convicções e crenças aceitáveis para maioria ou não, todo tipo de espiritualidade precisa ajudá-la na compreensão de si mesma e, principalmente, no trato com o outro (Outro como transcendente ou outro como semelhante, porém diverso de si, para além de si). A espiritualidade que se resume a ritos que se concentrem na satisfação de si mesmo e que tenham como único fim a autoafirmação e reiteração de determinadas crenças e códigos, além de irrelevante pode tornar-se extremamente prejudicial à sociedade.
Dito isto, não cabe aqui estabelecer ou determinar que tipos de espiritualidade são relevantes ou não. Mas é possível, a cada um, exercer uma autocrítica consciente a fim de se policiar nos fins justificativos das ações que exercemos para concretizar esta espiritualidade. Para tanto, pensemos sobre nossas práticas, os locais onde costumamos nos reunir, nossos objetivos pessoais e comuns, os ritos e liturgias que seguimos, os manuais que temos como bases para nosso código de ética pessoal. Estes itens podem sinalizar se o que buscamos e a influência que efetivamente exercemos na sociedade têm sido mais relevantes do que prejudiciais.
Algumas perguntas podem nos ajudar nesse sentido: Será que nossas ‘reuniões’, nossos programas e grupos aos quais pertencemos têm valorizado e proporcionado à vida daquele que é diferente maior dignidade e possibilidade de subsistência? Será que nossos ritos têm nos ajudado a ter maior consciência do outro e de suas necessidades e de como podemos supri-las ou têm apenas reforçado ideias que não saem do plano do discurso vazio? Será que nossa espiritualidade ou maneira de vivenciar o que acreditamos tem nos ajudado a construir uma sociedade livre, com menos armas defensivas contra argumentos e críticas e mais disposição para o diálogo e a busca pela compreensão das razões do outro? Será que os benefícios de nossas crenças são apenas privilégios para os que pensam como nós? Será que não estamos mais propensos a defender nossas ideias do que a vida humana?
A estes questionamentos juntam-se a minha indignação com a atitude de pessoas que usam a própria religiosidade para se autopromover, ao mesmo tempo em que ignoram sua necessidade de estabelecer pontes de relacionamento com aqueles que discordam de suas ideias e posturas. Pessoas que parecem exemplo aos que distante estão, mas que entre familiares subjugam, oprimem, destratam e não são capazes de admitir seus próprios erros. Líderes – religiosos ou não – que impõem a própria vontade a outros, mas que são incapazes de servir aos que julga inferiores a si mesmo sem esperar nenhum tipo de retribuição.
Estes, não tenho receio em afirmar, são os perfeitos protótipos resultantes da coabitação entre macacos e porcos: limitam-se a si mesmos em uma mentalidade defensivamente instintiva e agem de forma cruel com o próximo, a despeito de seu valor intrínseco como ser humano. São cérebros de macaco com espírito de porco ambulantes, santos do paoco , cães que perseguem a própria cauda, cuja vida tem seu fim em si mesmo, sem a mínima intenção de sair perdendo em nada.
E ao surgirem as crises relativas a ataques contra a vida e a dignidade humana, como as que temos presenciado em nossos dias, este tipo de espiritualidade fica mais evidente, quando os ritos não fazem nenhuma diferença, quando as práticas se tornam tão vazias que não constroem nenhum tipo de ponte para a solidariedade – apenas incitam a mais retaliação.
Se minha espiritualidade só me leva a condenar e a ameaçar a vida alheia, ou pior, se esta espiritualidade gira apenas em torno de mim mesma, ignorando o outro e a possibilidade de renunciar minhas necessidades e desejos em favor do próximo, sou obrigada a concordar que não passo do produto de uma mentalidade primata com um espírito suíno.
Angela Natel – 16/01/2015