sábado, 23 de junho de 2018

É hora de parar para falar sobre isso

"Hannah Arendt questionou como o nazismo foi possível... Como o nazismo surgiu em uma sociedade aparentemente bem ordenada. Como o totalitarismo se consolidou em meio a gente que filosofava sobre a verdade, sobre a justiça, sobre a paz perpétua... Você mata? Você que me lê.. mata? Nós, enquanto sujeitos, somos maus? Fazemos vilanias? Se, em grandes números, a resposta é negativa - e, atentando para estatísticas, tenho minhas dúvidas -, como é possível? Como é possível que, em conjunto, produzamos uma sociedade assim tão asquerosa, com práticas tão ignóbeis? De onde surge e se consolida esse estado de coisas em que crianças devem "saber" o que vestir, para que possam continuar a viver? Que estado de coisas é esse em que mães têm que velar seus filhos, por terem sido "confundidos" com "bandidos"? São crianças, meu Deus. E, mesmo que não fossem, são gente!!! E, mesmo que fossem adultos bandidos, são cidadãos. Não são e não podem ser apenas números. Não são, nem podem ser, o alvo corriqueiro de autos de resistência forjados. Não são, nem podem ser, escravizados por um sistema que teima em agir como "capitães do mato" -- capitães do mato que matam --, eliminando as "vidas secas", por mais produtivas que sejam e são. Não são apenas os Marcos Vinícius. São todos aqueles que, por uma lógica de gueto, apenas conhecem o Estado policialesco. Aquele Estado que aplaude execuções mais do que provisórias... execuções sumárias por parte de Dredds - um misto de policial, juiz e carrasco -, que decidem quem vive e quem morre, sem direito a apelo. Um Estado que mata e nega às suas vítimas até mesmo uma cova e um nome. Um Estado que simplesmente imagina que "passagem na polícia" seja razão suficiente para o extermínio. Policiais matam e morrem... Matam e morrem - e morrem!!, enfatizo - em meio à reprodução de lógica belicista... Como se o Estado vivesse em guerra... Uma guerra em que não há leis..., nem mesmo a de Genebra. Apenas um discurso retórico, em que "autoridades" legitimam o sangue no asfalto... A culpa é de quem aperta o gatilho? Mas, quem tanto aperta o gatilho? Quem mantém e consolida essa estrutura? Sinto dizê-lo: somos nós. Nós todos. Nós que nos omitimos. Nós que permitimos a existência de um Estado-centauro --- com discurso humanista e práticas autoritárias ---, cada vez mais convertido em um Estado-cavalo, em que até mesmo o discurso humanista cínico tem sido jogado fora. Sequer os adornos retóricos iluministas são invocados... Só resta o extermínio... Um país em que mulheres têm fundado medo de serem violentadas no transporte coletivo... Um país em que crianças temem ser mortas pelo aparato de "proteção" policial. Um país em que brasileiros "cordiais" matam por conta da cor da camiseta da vítima... Um Estado em que há "autoridades" falando em "excesso" de garantismo e de garantias..., talvez sem notar que, com a promessa de proteger uns contra outros, por vezes faz com que o Estado se torne o grande carrasco, assaltando à noite aquilo que disse ter protegido durante o dia... Um Estado em que o Iluminismo ainda não chegou..., em que o anjo da História, alvo das letras de Benjamin, acumulando seus cadáveres na margem do progresso, apenas encontra o entorpecimento coletivo... de tão acostumado que o mundo está com tanto sadismo coletivo. Como é possível? Talvez, nem Hannah tivesse a resposta. Um Estado em que mães têm que justificar o direito à vida do filho, abrindo a mochila escolar, de modo a gritar: "meu filho era um trabalhador!" Um Estado que nos desonra, enquanto sociedade... Mas, o Estado somos nós... Não uma idealidade hegeliana. Não uma abstração. O Estado somos nós... Então, você se importa? Mas, se nos importamos - e eu me importo!!! -, como é que isso se mantém e se reproduz? Em uma sociedade em que crianças são mortas ou enjauladas... E enjauladas pelos "defensores" mundiais da "democracia"... Como já escreveu Brecht, "Que tempos são esses, quando falar sobre flores é quase um crime.... pois significa silenciar sobre tanta injustiça?" Um tempo em que há tantos "atiradores do muro de Berlim"... sobrevoando nossas favelas e escolhendo quem vive... e os Marcos Vinícius que morrem. Triste. E ainda há quem fale em "Brasil: democracia racial"... Seria sinal de ingenuidade, não fosse grotesco cinismo."
Flavio Antônio da Cruz

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É hora de parar para falar sobre isso

"Hannah Arendt questionou como o nazismo foi possível... Como o nazismo surgiu em uma sociedade aparentemente bem ordenada. Como o totalitarismo se consolidou em meio a gente que filosofava sobre a verdade, sobre a justiça, sobre a paz perpétua... Você mata? Você que me lê.. mata? Nós, enquanto sujeitos, somos maus? Fazemos vilanias? Se, em grandes números, a resposta é negativa - e, atentando para estatísticas, tenho minhas dúvidas -, como é possível? Como é possível que, em conjunto, produzamos uma sociedade assim tão asquerosa, com práticas tão ignóbeis? De onde surge e se consolida esse estado de coisas em que crianças devem "saber" o que vestir, para que possam continuar a viver? Que estado de coisas é esse em que mães têm que velar seus filhos, por terem sido "confundidos" com "bandidos"? São crianças, meu Deus. E, mesmo que não fossem, são gente!!! E, mesmo que fossem adultos bandidos, são cidadãos. Não são e não podem ser apenas números. Não são, nem podem ser, o alvo corriqueiro de autos de resistência forjados. Não são, nem podem ser, escravizados por um sistema que teima em agir como "capitães do mato" -- capitães do mato que matam --, eliminando as "vidas secas", por mais produtivas que sejam e são. Não são apenas os Marcos Vinícius. São todos aqueles que, por uma lógica de gueto, apenas conhecem o Estado policialesco. Aquele Estado que aplaude execuções mais do que provisórias... execuções sumárias por parte de Dredds - um misto de policial, juiz e carrasco -, que decidem quem vive e quem morre, sem direito a apelo. Um Estado que mata e nega às suas vítimas até mesmo uma cova e um nome. Um Estado que simplesmente imagina que "passagem na polícia" seja razão suficiente para o extermínio. Policiais matam e morrem... Matam e morrem - e morrem!!, enfatizo - em meio à reprodução de lógica belicista... Como se o Estado vivesse em guerra... Uma guerra em que não há leis..., nem mesmo a de Genebra. Apenas um discurso retórico, em que "autoridades" legitimam o sangue no asfalto... A culpa é de quem aperta o gatilho? Mas, quem tanto aperta o gatilho? Quem mantém e consolida essa estrutura? Sinto dizê-lo: somos nós. Nós todos. Nós que nos omitimos. Nós que permitimos a existência de um Estado-centauro --- com discurso humanista e práticas autoritárias ---, cada vez mais convertido em um Estado-cavalo, em que até mesmo o discurso humanista cínico tem sido jogado fora. Sequer os adornos retóricos iluministas são invocados... Só resta o extermínio... Um país em que mulheres têm fundado medo de serem violentadas no transporte coletivo... Um país em que crianças temem ser mortas pelo aparato de "proteção" policial. Um país em que brasileiros "cordiais" matam por conta da cor da camiseta da vítima... Um Estado em que há "autoridades" falando em "excesso" de garantismo e de garantias..., talvez sem notar que, com a promessa de proteger uns contra outros, por vezes faz com que o Estado se torne o grande carrasco, assaltando à noite aquilo que disse ter protegido durante o dia... Um Estado em que o Iluminismo ainda não chegou..., em que o anjo da História, alvo das letras de Benjamin, acumulando seus cadáveres na margem do progresso, apenas encontra o entorpecimento coletivo... de tão acostumado que o mundo está com tanto sadismo coletivo. Como é possível? Talvez, nem Hannah tivesse a resposta. Um Estado em que mães têm que justificar o direito à vida do filho, abrindo a mochila escolar, de modo a gritar: "meu filho era um trabalhador!" Um Estado que nos desonra, enquanto sociedade... Mas, o Estado somos nós... Não uma idealidade hegeliana. Não uma abstração. O Estado somos nós... Então, você se importa? Mas, se nos importamos - e eu me importo!!! -, como é que isso se mantém e se reproduz? Em uma sociedade em que crianças são mortas ou enjauladas... E enjauladas pelos "defensores" mundiais da "democracia"... Como já escreveu Brecht, "Que tempos são esses, quando falar sobre flores é quase um crime.... pois significa silenciar sobre tanta injustiça?" Um tempo em que há tantos "atiradores do muro de Berlim"... sobrevoando nossas favelas e escolhendo quem vive... e os Marcos Vinícius que morrem. Triste. E ainda há quem fale em "Brasil: democracia racial"... Seria sinal de ingenuidade, não fosse grotesco cinismo."
Flavio Antônio da Cruz