domingo, 1 de abril de 2018

Traumas que nos põem na defensiva



Impossível ignorar a imagem da menina síria de quatro anos que teria levantado as mãos para o alto como se estivesse se rendendo ao confundir uma câmera fotográfica como uma arma. A imagem comovente foi compartilhada pela fotojornalista Nadia Abu Shaban no Twitter no mês de março de 2015.
Uma imagem que nos remete a uma atitude muito comum: a defensiva que as pessoas se colocam devido aos traumas experimentados, as dores que vêm à tona com a lembrança de um ato de violência, de um abuso, da violação de um direito humano. Quantos de nós já não levantamos nossas defesas e nos sentimos vulneráveis numa simples conversa, quando uma sobreposição de imagens se forma em nossa mente e o que estamos vivendo se parece com alguma circunstância que no passado veio a nos ferir. Diante de uma situação de vulnerabilidade, duas podem ser as reações: se nos vemos impotentes, erguemos nossas mãos em rendição, entregamos nossos valores e nos abandonamos à deriva da situação ou, se nos consideramos fortes o suficiente, erguemos nossos muros de proteção e lançamos todo tipo de contra-ataque, seja com palavras e argumentação racional, seja com atitudes ou até mesmo rebatendo em violência.
Tudo isso não passa da mesma circunstância: os traumas que nos põem na defensiva e nos impedem de enxergar no outro uma atitude pacificadora, uma tentativa de estabelecer um vínculo, uma relação. Perdemos muito quando, por exemplo, numa discussão, enquanto o outro fala, já pensamos numa resposta, sem o mínimo esforço em primeiro ouvir e realmente compreender o que o outro quer dizer com suas palavras. Perdemos muito quando supomos antes de perguntar para esclarecer, quando nos entregamos aos traumas e somos levados pelas ondas das emoções calejadas, quando não baixamos as defesas nem arriscamos estender a mão ao invés de levantá-las.
É triste e profunda a reação que uma imagem como a publicada pela jornalista pode provocar e, como seres ainda humanos que somos, precisamos atentar para nossas atitudes, não somente no sentido de evitar causar tais traumas ao outro, nem apenas em socorro aos que já sofrem nestas circunstâncias, mas também olhando no espelho do próprio coração e perceber quando somos mais guiados por traumas nas relações passadas do que pela vida que há na experiência do relacionamento interpessoal que se nos apresenta diariamente no presente.
Vale aqui a reflexão, ainda que simplória, de cuidarmos em nos abster dessa escravidão emocional que nos obriga a constantemente tentar provar algo para alguém, de nos livrar desse vício desesperado por sempre sair com as respostas, de sempre ter razão, essa luta por não ser mais machucado – que não passa de simples medo. Um exemplo como este da menina síria reflete o que se encontra no coração de toda a humanidade, revela as feridas que nos impedem de estabelecer vínculos saudáveis, de amar e se entregar incondicionalmente.
Que nesta páscoa, uma festa celebrada por mais de um credo religioso, seja um tempo para todos nós refletirmos a respeito desse medo de nos entregarmos ao outro, desse trauma que nos impede de largar os argumentos tão cerrados em nossos lábios. Que, como o próprio sentido da páscoa – pesach/passover – assim como o anjo da morte passou por cima das casas dos hebreus no Egito e não afligiu com morte seus primogênitos, possamos passar por cima destes traumas e não atentar contra a vida do bem mais precioso do coração alheio. Que, com liberdade possamos olhar nos olhos do outro e não mais enxergar as dores que sofremos no passado, mas sejamos livres em amar e nos deixar amar, em repartir e estabelecer vínculos para a eternidade.
Feliz páscoa a todos os que desejam esta liberdade.

Angela Natel

https://angelanatel.wordpress.com/

Março/2015

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Traumas que nos põem na defensiva



Impossível ignorar a imagem da menina síria de quatro anos que teria levantado as mãos para o alto como se estivesse se rendendo ao confundir uma câmera fotográfica como uma arma. A imagem comovente foi compartilhada pela fotojornalista Nadia Abu Shaban no Twitter no mês de março de 2015.
Uma imagem que nos remete a uma atitude muito comum: a defensiva que as pessoas se colocam devido aos traumas experimentados, as dores que vêm à tona com a lembrança de um ato de violência, de um abuso, da violação de um direito humano. Quantos de nós já não levantamos nossas defesas e nos sentimos vulneráveis numa simples conversa, quando uma sobreposição de imagens se forma em nossa mente e o que estamos vivendo se parece com alguma circunstância que no passado veio a nos ferir. Diante de uma situação de vulnerabilidade, duas podem ser as reações: se nos vemos impotentes, erguemos nossas mãos em rendição, entregamos nossos valores e nos abandonamos à deriva da situação ou, se nos consideramos fortes o suficiente, erguemos nossos muros de proteção e lançamos todo tipo de contra-ataque, seja com palavras e argumentação racional, seja com atitudes ou até mesmo rebatendo em violência.
Tudo isso não passa da mesma circunstância: os traumas que nos põem na defensiva e nos impedem de enxergar no outro uma atitude pacificadora, uma tentativa de estabelecer um vínculo, uma relação. Perdemos muito quando, por exemplo, numa discussão, enquanto o outro fala, já pensamos numa resposta, sem o mínimo esforço em primeiro ouvir e realmente compreender o que o outro quer dizer com suas palavras. Perdemos muito quando supomos antes de perguntar para esclarecer, quando nos entregamos aos traumas e somos levados pelas ondas das emoções calejadas, quando não baixamos as defesas nem arriscamos estender a mão ao invés de levantá-las.
É triste e profunda a reação que uma imagem como a publicada pela jornalista pode provocar e, como seres ainda humanos que somos, precisamos atentar para nossas atitudes, não somente no sentido de evitar causar tais traumas ao outro, nem apenas em socorro aos que já sofrem nestas circunstâncias, mas também olhando no espelho do próprio coração e perceber quando somos mais guiados por traumas nas relações passadas do que pela vida que há na experiência do relacionamento interpessoal que se nos apresenta diariamente no presente.
Vale aqui a reflexão, ainda que simplória, de cuidarmos em nos abster dessa escravidão emocional que nos obriga a constantemente tentar provar algo para alguém, de nos livrar desse vício desesperado por sempre sair com as respostas, de sempre ter razão, essa luta por não ser mais machucado – que não passa de simples medo. Um exemplo como este da menina síria reflete o que se encontra no coração de toda a humanidade, revela as feridas que nos impedem de estabelecer vínculos saudáveis, de amar e se entregar incondicionalmente.
Que nesta páscoa, uma festa celebrada por mais de um credo religioso, seja um tempo para todos nós refletirmos a respeito desse medo de nos entregarmos ao outro, desse trauma que nos impede de largar os argumentos tão cerrados em nossos lábios. Que, como o próprio sentido da páscoa – pesach/passover – assim como o anjo da morte passou por cima das casas dos hebreus no Egito e não afligiu com morte seus primogênitos, possamos passar por cima destes traumas e não atentar contra a vida do bem mais precioso do coração alheio. Que, com liberdade possamos olhar nos olhos do outro e não mais enxergar as dores que sofremos no passado, mas sejamos livres em amar e nos deixar amar, em repartir e estabelecer vínculos para a eternidade.
Feliz páscoa a todos os que desejam esta liberdade.

Angela Natel

https://angelanatel.wordpress.com/

Março/2015