segunda-feira, 1 de junho de 2009

A VERDADE



A questão dolorosa que enfrentamos na igreja de hoje é se o amor de Deus pode ser comprado tão barato. O primeiro passo na busca da verdade não é a resolução moral de evitar o hábito da mentirinha — por mais desagradável que uma deformação de caráter possa ser. Não se trata de uma decisão sobre deixar de enganar os outros, e sim da decisão de parar de nos enganar.

A menos que tenhamos a mesma paixão inexorável pela verdade que Jesus demonstrou (...), estamos destruindo nossa fé, traindo o Senhor e nos enganando. O auto-engano é inimigo da integridade, pois ficamos impedidos de nos ver como realmente somos. (...)

Muitos anos atrás, testemunhei o poder do auto-engano reeditado de forma dramática no centro de reabilitação de alcoólicos de uma pequena cidade americana. (...)
O cenário: uma sala de recreação ampla e de dois andares na orla de uma colina com vista
para um lago artificial. Estavam lá reunidos 25 dependentes químicos. Nosso líder era um experiente conselheiro, hábil terapeuta e membro veterano da equipe. Seu nome: Sean Murphy-O' Connor, mas ele normalmente anunciava sua chegada dizendo: — É ele mesmo. Vamos trabalhar.
Sean mandou que um paciente chamado Max assumisse a "cadeira de interrogatório" no centro do grupo disposto em "U". Max, um homem franzino e de baixa estatura, era um cristão nominal, casado e com cinco filhos, proprietário e presidente de sua empresa, rico, afável e dotado de uma pose notável.
Desde quando você tem bebido como um porco, Max? — Murphy-O'Connor havia começado o interrogatório.
Isso é injusto — Max recolheu-se.
Veremos. Quero saber da sua história com a bebida. Quanta cachaça por dia?
Max reacendeu seu cachimbo.
Tomo duas Marias com os rapazes antes do almoço e dois Martinis depois que o escritório fecha, às cinco. Depois...
O que são Marias e Martinis? — interrompeu Murphy-O'Connor.
Bloody Marys: vodca, suco de tomate, uma pitada de limão e de Worcestershire, um toque de extrato de pimenta vermelha; e martinis: gim, extra-seco, gelado com uma azeitona e uma espremida de limão.
Obrigado, Maria Martinis. Prossiga.
Minha esposa gosta de um drinque antes do jantar. Viciei-a em Martini há muitos anos. Claro que ela os chama de "aperitivos" — sorriu Max. — Vocês naturalmente entendem o eufemismo, não é verdade, senhores?
Ninguém respondeu.
Como eu ia dizendo, tomamos dois martínis antes do jantar e mais dois antes de dormir.
Um total de oito drinques por dia, Max? — quis saber Murphy- O'Connor.
Exatamente. Nem uma gota a mais nem a menos.
Você é mentiroso.
Sem se abalar, Max explicou:
Vou fingir que não ouvi isso. Estou na ocupação há vinte e tantos anos e construí minha reputação em cima da honestidade, não da falsidade. As pessoas sabem que minha palavra é de confiança.
Já chegou a esconder uma garrafa em casa? — perguntou Benjamim, um índio navajo do Novo México.
Não seja ridículo. Tenho um bar na minha sala de estar maior que um traseiro de elefante. Nada pessoal, sr. Murphy-O'Connor.
Max sentia que havia recuperado o controle. Estava sorrindo.
Você guarda bebida na garagem, Max?
Naturalmente. Tenho de repor o estoque. Um homem na minha posição recebe muita gente em casa — o executivo arrogante havia reassumido.
Quantas garrafas na garagem?
Não sei dizer a quantidade com precisão. Assim, de improviso, eu diria dois engradados de Smirnoff, um engradado de gim Beefeater, algumas garrafas de bourbon e de uísque e um punhado de licores.
O interrogatório prosseguiu por mais vinte minutos. Max eximia-se e esquivava-se, minimizava, racionalizava e justificava seu hábito de beber.
Finalmente, apanhado por um implacável interrogatório cruzado, ele admitiu que guardava uma garrafa de vodca no criado-mudo, uma garrafa de gim na mala para fins de viagem, outra no banheiro para fins medicinais e três mais no escritório para ter o que oferecer aos clientes. Ele trejeitava ocasionalmente, mas nunca perdia sua postura confiante.
— Senhores — sorriu Max, — acho que todos nós já nos demos o direito de dourar a pílula uma vez ou outra nessa vida — foi como ele colocou, dando a entender que apenas homens de envergadura podiam dar-se ao luxo de rir de si mesmos.
Você é mentiroso — ecoou outra voz.
Não é preciso ficar vingativo, Charlie — retrucou Max. — Lembre-se da passagem do evangelho de João sobre o cisco no olho do seu irmão e a viga no seu. E aquela outra em Mateus sobre o roto falando do rasgado.
(Senti-me compelido a informar Max que a comparação entre o cisco e a tábua não se encontrava no evangelho de João, mas no de Mateus, e que a história do roto e do rasgado era um provérbio secular que não constava nos evangelhos. Senti, porém, que um espírito de presunção e um ar de superioridade espiritual haviam me envolvido de repente, como um nevoeiro. Decidi abrir mão da correção fraternal. Afinal, eu não estava em Hazelden fazendo uma pesquisa para um livro. Eu era apenas um bêbado incorrigível como Max.)
— Tragam-me um telefone — disse Murphy-O'Connor.
Um telefone foi trazido num carrinho para a sala. Murphy-O'Connor consultou um bloco de notas e discou um número interurbano para a cidade de Max. O receptor era amplificado eletronicamente, de modo que a pessoa do outro lado da linha podia ser ouvida claramente por todos no salão do lago.
Hank Shea?
Ele mesmo. Quem está falando?
Meu nome é Sean Murphy-O'Connor. Sou conselheiro de um centro de reabilitação de drogas e álcool no Meio-Oeste. Você se recorda de um cliente chamado Max? (Pausa) Ótimo. Com a permissão da família dele, estou pesquisando a história de Max com a bebida. Como você trabalha como barman nesse lugar todas as tardes, fiquei pensando se você saberia me dizer
aproximadamente quantos drinques o Max consome por dia?
Conheço o Max muito bem, mas você tem certeza de que tem permissão para me interrogar?
Tenho uma declaração assinada. Pode falar.
— Max é um cara fantástico. Gosto demais dele. Ele despeja trinta contos no balcão toda tarde. O Max tomas os seus seis martinis básicos, compra mais uns drinques e sempre me deixa uma gorjeta de cinco dólares. Grande sujeito.
Max pôs-se de pé num salto. Erguendo a mão direita desafiadoramente, ele despejou um caudal de palavrões digno de um estivador. Ele atacou os ancestrais de Murphy-O'Connor, colocou em dúvida a legitimidade de Charlie e a integridade de toda a unidade de tratamento. Ele agarrou-se ao sofá e cuspiu no tapete.
Então, num feito notável, recuperou imediatamente a compostura. Max sentou-se e observou, sem nenhuma afetação, que até mesmo Jesus havia perdido a paciência no templo ao ver os saduceus comercializarem pombas e bolos. Depois de uma prédica improvisada sobre a ira justificada, ele reabasteceu o cachimbo, imaginando que o interrogatório havia terminado.
Você já tratou mal algum dos seus filhos? — Fred perguntou.
Fico feliz que você tenha levantado esse assunto, Fred. Tenho uma profunda ligação com meus quatro garotos. No último dia de Ação de Graças levei-os para uma expedição de pescaria nas Rochosas. Quatro dias de vida dura no mato. Foi memorável. Dois de meus filhos formaram-se em Harvard, você sabe, e Max Jr. está no terceiro ano da...
Não foi o que eu perguntei. Pelo menos uma vez na vida todo pai trata mal um de seus filhos. Tenho 62 anos e posso assegurar que é assim. Agora dê-nos um exemplo específico.
Seguiu-se uma longa pausa. Finalmente:
Bem, fui um tanto duro com minha filha de nove anos na última véspera de Natal.
O que aconteceu?
Não lembro. Apenas fico com uma sensação de pesar quando penso nisso.
Onde aconteceu? Quais eram as circunstâncias?
— Espere aí um minuto — a voz de Max ergueu-se com fúria. — Já disse que não lembro. Só não consigo me livrar dessa sensação ruim.
Sem alarde, Murphy-O'Connor discou mais uma vez para a cidade de Max e falou com a esposa dele.
— Sean Murphy-O'Connor falando, minha senhora. Estamos no meio de uma terapia de grupo e seu marido acaba de contar que tratou mal sua filha na véspera do Natal passado. A senhora poderia fornecer os detalhes, por favor?
Uma voz suave encheu a sala.
— Sim, posso contar-lhe a coisa toda. Parece que foi ontem. Nossa filha Debbie queria um par de sapatos de presente de Natal. Na tarde de 24 de dezembro meu marido levou-a de carro até a cidade, deu-lhe sessenta dólares e disse que ela comprasse o melhor par de sapatos que houvesse na loja. Foi exatamente o que ela fez. Quando entrou novamente na caminhonete que meu marido estava dirigindo, ela beijou-o no rosto e disse que ele era o melhor pai do mundo. Max estava orgulhoso como um pavão e decidiu celebrar no caminho de volta para casa. Ele parou no Cork'n'Bottle, um bar que fica a alguns quilômetros da nossa casa, e disse a Debbie que voltava já. Era um dia limpo e extremamente frio, cerca de vinte graus abaixo de zero, por isso Max deixou o motor funcionando e fechou as portas do lado de fora de modo que ninguém
pudesse entrar. Isso era um pouco depois das três da tarde, e...
Silêncio.
— Sim?
O som de uma respiração pesada encheu a sala de recreação. A voz esmoreceu. Ela estava chorando.
— Meu marido encontrou no bar alguns velhos colegas do exército. Envolvido na euforia da reunião, perdeu a noção de tempo, de propósito e de tudo o mais. Ele saiu do Cork'n'Bottle à meia-noite. Bêbado. O motor havia parado de funcionar e as janelas do carro estavam bloqueadas com o gelo. A pequena Debbie tinha graves ulcerações de frio nas orelhas e nos dedos da mão. Quando a levamos ao hospital, os médicos tiveram de operar. Amputaram o polegar e o indicador da mão direita. Ela vai ficar surda pelo resto da vida.
Max parecia estar tendo um ataque do coração. Ele lutava para manter-se de pé, fazendo movimentos desajeitados e descoordenados. Os óculos voaram para a direita e o cachimbo, para a esquerda. Ele caiu de quatro, soluçando histericamente.
Murphy-O'Connor levantou-se e disse suavemente:
— Vamos circulando.
Vinte e quatro alcoólicos e viciados subiram a escadaria de oito degraus. Viramos à esquerda, reunimo-nos ao longo da amurada do mezanino e olhamos para baixo. Ninguém consegue esquecer o que viu naquele dia, 24 de abril, exatamente ao meio-dia. Max ainda estava de quatro. Seus soluços haviam crescido a berros. Murphy-O'Connor aproximou-se dele, pressionou seu pé contra o tórax de Max e empurrou. Max rolou de costas no chão.
— Seu canalha miserável — urrou Murphy-O'Connor. — Tem uma porta à sua direita e uma janela à sua esquerda. Tome o que for mais rápido. Saia daqui antes que eu vomite. Não dirijo um centro de reabilitação para mentirosos.
Se isso soa como uma resposta cruel, devemos lembrar da filosofia desse centro de reabilitação baseado no amor disciplinar. Ela está alicerçada na convicção, nascida de longa experiência, de que nenhuma recuperação efetiva pode ser iniciada até que a pessoa admita que é impotente a respeito do álcool e que a sua vida se tornou ingovernável.
A alternativa ao evitar a verdade de sua situação é sempre alguma forma de autodestruição. Para Max havia três opções: loucura, morte prematura ou abstinência. Contudo, nenhuma opção era possível até que o inimigo fosse identificado mediante uma interação dolorosa, impiedosa, com seus semelhantes. O auto-engano precisava ser desmascarado em todo o seu absurdo.
A continuação da história é interessante. Max suplicou e obteve permissão para ficar. Então começou a passar pela mais notável transformação de personalidade que o grupo já havia testemunhado. O homem se tornou honesto e mais sincero, mais aberto, mais afetuoso e mais sensível do que era antes. O amor disciplinar o tornou real e a verdade o libertou.
(...)
Em autobiografia, Agostinho mostrou a estreita relação entre a busca pela verdade e a conversão do coração. Max não pôde encontrar a verdade do Deus vivo até enfrentar a realidade de seu alcoolismo. Com base na perspectiva bíblica, Max era um mentiroso. Na filosofia, o oposto da verdade é um erro; na Bíblia, o contrario da verdade é uma mentira. A mentira de Max consistia em dar a aparência de existência ao que de fato não existia: um inofensivo ato de beber socialmente. A verdade, para ele, era equivalente a livrar-se das aparências para reconhecer a realidade de seu alcoolismo.
No evangelho de João, o mentiroso obstinadamente recusa-se a ver a luz e a verdade, e mergulha nas trevas. O Diabo é o pai das mentiras: "Ele foi homicida desde o princípio e não se apegou à verdade, pois não há verdade nele. Quando mente, fala a sua própria língua, pois é mentiroso e pai da mentira" (João 8:44).
O Diabo é o grande ilusionista. Ele enverniza a verdade: "Se afirmarmos que estamos sem pecado, enganamos a nós mesmos, e a verdade não está em nós" (1 João 1:8). Incita-nos a dar importância ao que não tem importância, veste com falso resplendor o que é menos importante e nos desvia do que é insuperavelmente verdadeiro. O Diabo nos faz viver num mundo de ilusão,
devaneios e sombras.
("Convite à loucura" - Brennan Manning)

Um comentário:

Lúcia disse...

Mto forte, o livro deve ser realmente bom. Bjs

A VERDADE



A questão dolorosa que enfrentamos na igreja de hoje é se o amor de Deus pode ser comprado tão barato. O primeiro passo na busca da verdade não é a resolução moral de evitar o hábito da mentirinha — por mais desagradável que uma deformação de caráter possa ser. Não se trata de uma decisão sobre deixar de enganar os outros, e sim da decisão de parar de nos enganar.

A menos que tenhamos a mesma paixão inexorável pela verdade que Jesus demonstrou (...), estamos destruindo nossa fé, traindo o Senhor e nos enganando. O auto-engano é inimigo da integridade, pois ficamos impedidos de nos ver como realmente somos. (...)

Muitos anos atrás, testemunhei o poder do auto-engano reeditado de forma dramática no centro de reabilitação de alcoólicos de uma pequena cidade americana. (...)
O cenário: uma sala de recreação ampla e de dois andares na orla de uma colina com vista
para um lago artificial. Estavam lá reunidos 25 dependentes químicos. Nosso líder era um experiente conselheiro, hábil terapeuta e membro veterano da equipe. Seu nome: Sean Murphy-O' Connor, mas ele normalmente anunciava sua chegada dizendo: — É ele mesmo. Vamos trabalhar.
Sean mandou que um paciente chamado Max assumisse a "cadeira de interrogatório" no centro do grupo disposto em "U". Max, um homem franzino e de baixa estatura, era um cristão nominal, casado e com cinco filhos, proprietário e presidente de sua empresa, rico, afável e dotado de uma pose notável.
Desde quando você tem bebido como um porco, Max? — Murphy-O'Connor havia começado o interrogatório.
Isso é injusto — Max recolheu-se.
Veremos. Quero saber da sua história com a bebida. Quanta cachaça por dia?
Max reacendeu seu cachimbo.
Tomo duas Marias com os rapazes antes do almoço e dois Martinis depois que o escritório fecha, às cinco. Depois...
O que são Marias e Martinis? — interrompeu Murphy-O'Connor.
Bloody Marys: vodca, suco de tomate, uma pitada de limão e de Worcestershire, um toque de extrato de pimenta vermelha; e martinis: gim, extra-seco, gelado com uma azeitona e uma espremida de limão.
Obrigado, Maria Martinis. Prossiga.
Minha esposa gosta de um drinque antes do jantar. Viciei-a em Martini há muitos anos. Claro que ela os chama de "aperitivos" — sorriu Max. — Vocês naturalmente entendem o eufemismo, não é verdade, senhores?
Ninguém respondeu.
Como eu ia dizendo, tomamos dois martínis antes do jantar e mais dois antes de dormir.
Um total de oito drinques por dia, Max? — quis saber Murphy- O'Connor.
Exatamente. Nem uma gota a mais nem a menos.
Você é mentiroso.
Sem se abalar, Max explicou:
Vou fingir que não ouvi isso. Estou na ocupação há vinte e tantos anos e construí minha reputação em cima da honestidade, não da falsidade. As pessoas sabem que minha palavra é de confiança.
Já chegou a esconder uma garrafa em casa? — perguntou Benjamim, um índio navajo do Novo México.
Não seja ridículo. Tenho um bar na minha sala de estar maior que um traseiro de elefante. Nada pessoal, sr. Murphy-O'Connor.
Max sentia que havia recuperado o controle. Estava sorrindo.
Você guarda bebida na garagem, Max?
Naturalmente. Tenho de repor o estoque. Um homem na minha posição recebe muita gente em casa — o executivo arrogante havia reassumido.
Quantas garrafas na garagem?
Não sei dizer a quantidade com precisão. Assim, de improviso, eu diria dois engradados de Smirnoff, um engradado de gim Beefeater, algumas garrafas de bourbon e de uísque e um punhado de licores.
O interrogatório prosseguiu por mais vinte minutos. Max eximia-se e esquivava-se, minimizava, racionalizava e justificava seu hábito de beber.
Finalmente, apanhado por um implacável interrogatório cruzado, ele admitiu que guardava uma garrafa de vodca no criado-mudo, uma garrafa de gim na mala para fins de viagem, outra no banheiro para fins medicinais e três mais no escritório para ter o que oferecer aos clientes. Ele trejeitava ocasionalmente, mas nunca perdia sua postura confiante.
— Senhores — sorriu Max, — acho que todos nós já nos demos o direito de dourar a pílula uma vez ou outra nessa vida — foi como ele colocou, dando a entender que apenas homens de envergadura podiam dar-se ao luxo de rir de si mesmos.
Você é mentiroso — ecoou outra voz.
Não é preciso ficar vingativo, Charlie — retrucou Max. — Lembre-se da passagem do evangelho de João sobre o cisco no olho do seu irmão e a viga no seu. E aquela outra em Mateus sobre o roto falando do rasgado.
(Senti-me compelido a informar Max que a comparação entre o cisco e a tábua não se encontrava no evangelho de João, mas no de Mateus, e que a história do roto e do rasgado era um provérbio secular que não constava nos evangelhos. Senti, porém, que um espírito de presunção e um ar de superioridade espiritual haviam me envolvido de repente, como um nevoeiro. Decidi abrir mão da correção fraternal. Afinal, eu não estava em Hazelden fazendo uma pesquisa para um livro. Eu era apenas um bêbado incorrigível como Max.)
— Tragam-me um telefone — disse Murphy-O'Connor.
Um telefone foi trazido num carrinho para a sala. Murphy-O'Connor consultou um bloco de notas e discou um número interurbano para a cidade de Max. O receptor era amplificado eletronicamente, de modo que a pessoa do outro lado da linha podia ser ouvida claramente por todos no salão do lago.
Hank Shea?
Ele mesmo. Quem está falando?
Meu nome é Sean Murphy-O'Connor. Sou conselheiro de um centro de reabilitação de drogas e álcool no Meio-Oeste. Você se recorda de um cliente chamado Max? (Pausa) Ótimo. Com a permissão da família dele, estou pesquisando a história de Max com a bebida. Como você trabalha como barman nesse lugar todas as tardes, fiquei pensando se você saberia me dizer
aproximadamente quantos drinques o Max consome por dia?
Conheço o Max muito bem, mas você tem certeza de que tem permissão para me interrogar?
Tenho uma declaração assinada. Pode falar.
— Max é um cara fantástico. Gosto demais dele. Ele despeja trinta contos no balcão toda tarde. O Max tomas os seus seis martinis básicos, compra mais uns drinques e sempre me deixa uma gorjeta de cinco dólares. Grande sujeito.
Max pôs-se de pé num salto. Erguendo a mão direita desafiadoramente, ele despejou um caudal de palavrões digno de um estivador. Ele atacou os ancestrais de Murphy-O'Connor, colocou em dúvida a legitimidade de Charlie e a integridade de toda a unidade de tratamento. Ele agarrou-se ao sofá e cuspiu no tapete.
Então, num feito notável, recuperou imediatamente a compostura. Max sentou-se e observou, sem nenhuma afetação, que até mesmo Jesus havia perdido a paciência no templo ao ver os saduceus comercializarem pombas e bolos. Depois de uma prédica improvisada sobre a ira justificada, ele reabasteceu o cachimbo, imaginando que o interrogatório havia terminado.
Você já tratou mal algum dos seus filhos? — Fred perguntou.
Fico feliz que você tenha levantado esse assunto, Fred. Tenho uma profunda ligação com meus quatro garotos. No último dia de Ação de Graças levei-os para uma expedição de pescaria nas Rochosas. Quatro dias de vida dura no mato. Foi memorável. Dois de meus filhos formaram-se em Harvard, você sabe, e Max Jr. está no terceiro ano da...
Não foi o que eu perguntei. Pelo menos uma vez na vida todo pai trata mal um de seus filhos. Tenho 62 anos e posso assegurar que é assim. Agora dê-nos um exemplo específico.
Seguiu-se uma longa pausa. Finalmente:
Bem, fui um tanto duro com minha filha de nove anos na última véspera de Natal.
O que aconteceu?
Não lembro. Apenas fico com uma sensação de pesar quando penso nisso.
Onde aconteceu? Quais eram as circunstâncias?
— Espere aí um minuto — a voz de Max ergueu-se com fúria. — Já disse que não lembro. Só não consigo me livrar dessa sensação ruim.
Sem alarde, Murphy-O'Connor discou mais uma vez para a cidade de Max e falou com a esposa dele.
— Sean Murphy-O'Connor falando, minha senhora. Estamos no meio de uma terapia de grupo e seu marido acaba de contar que tratou mal sua filha na véspera do Natal passado. A senhora poderia fornecer os detalhes, por favor?
Uma voz suave encheu a sala.
— Sim, posso contar-lhe a coisa toda. Parece que foi ontem. Nossa filha Debbie queria um par de sapatos de presente de Natal. Na tarde de 24 de dezembro meu marido levou-a de carro até a cidade, deu-lhe sessenta dólares e disse que ela comprasse o melhor par de sapatos que houvesse na loja. Foi exatamente o que ela fez. Quando entrou novamente na caminhonete que meu marido estava dirigindo, ela beijou-o no rosto e disse que ele era o melhor pai do mundo. Max estava orgulhoso como um pavão e decidiu celebrar no caminho de volta para casa. Ele parou no Cork'n'Bottle, um bar que fica a alguns quilômetros da nossa casa, e disse a Debbie que voltava já. Era um dia limpo e extremamente frio, cerca de vinte graus abaixo de zero, por isso Max deixou o motor funcionando e fechou as portas do lado de fora de modo que ninguém
pudesse entrar. Isso era um pouco depois das três da tarde, e...
Silêncio.
— Sim?
O som de uma respiração pesada encheu a sala de recreação. A voz esmoreceu. Ela estava chorando.
— Meu marido encontrou no bar alguns velhos colegas do exército. Envolvido na euforia da reunião, perdeu a noção de tempo, de propósito e de tudo o mais. Ele saiu do Cork'n'Bottle à meia-noite. Bêbado. O motor havia parado de funcionar e as janelas do carro estavam bloqueadas com o gelo. A pequena Debbie tinha graves ulcerações de frio nas orelhas e nos dedos da mão. Quando a levamos ao hospital, os médicos tiveram de operar. Amputaram o polegar e o indicador da mão direita. Ela vai ficar surda pelo resto da vida.
Max parecia estar tendo um ataque do coração. Ele lutava para manter-se de pé, fazendo movimentos desajeitados e descoordenados. Os óculos voaram para a direita e o cachimbo, para a esquerda. Ele caiu de quatro, soluçando histericamente.
Murphy-O'Connor levantou-se e disse suavemente:
— Vamos circulando.
Vinte e quatro alcoólicos e viciados subiram a escadaria de oito degraus. Viramos à esquerda, reunimo-nos ao longo da amurada do mezanino e olhamos para baixo. Ninguém consegue esquecer o que viu naquele dia, 24 de abril, exatamente ao meio-dia. Max ainda estava de quatro. Seus soluços haviam crescido a berros. Murphy-O'Connor aproximou-se dele, pressionou seu pé contra o tórax de Max e empurrou. Max rolou de costas no chão.
— Seu canalha miserável — urrou Murphy-O'Connor. — Tem uma porta à sua direita e uma janela à sua esquerda. Tome o que for mais rápido. Saia daqui antes que eu vomite. Não dirijo um centro de reabilitação para mentirosos.
Se isso soa como uma resposta cruel, devemos lembrar da filosofia desse centro de reabilitação baseado no amor disciplinar. Ela está alicerçada na convicção, nascida de longa experiência, de que nenhuma recuperação efetiva pode ser iniciada até que a pessoa admita que é impotente a respeito do álcool e que a sua vida se tornou ingovernável.
A alternativa ao evitar a verdade de sua situação é sempre alguma forma de autodestruição. Para Max havia três opções: loucura, morte prematura ou abstinência. Contudo, nenhuma opção era possível até que o inimigo fosse identificado mediante uma interação dolorosa, impiedosa, com seus semelhantes. O auto-engano precisava ser desmascarado em todo o seu absurdo.
A continuação da história é interessante. Max suplicou e obteve permissão para ficar. Então começou a passar pela mais notável transformação de personalidade que o grupo já havia testemunhado. O homem se tornou honesto e mais sincero, mais aberto, mais afetuoso e mais sensível do que era antes. O amor disciplinar o tornou real e a verdade o libertou.
(...)
Em autobiografia, Agostinho mostrou a estreita relação entre a busca pela verdade e a conversão do coração. Max não pôde encontrar a verdade do Deus vivo até enfrentar a realidade de seu alcoolismo. Com base na perspectiva bíblica, Max era um mentiroso. Na filosofia, o oposto da verdade é um erro; na Bíblia, o contrario da verdade é uma mentira. A mentira de Max consistia em dar a aparência de existência ao que de fato não existia: um inofensivo ato de beber socialmente. A verdade, para ele, era equivalente a livrar-se das aparências para reconhecer a realidade de seu alcoolismo.
No evangelho de João, o mentiroso obstinadamente recusa-se a ver a luz e a verdade, e mergulha nas trevas. O Diabo é o pai das mentiras: "Ele foi homicida desde o princípio e não se apegou à verdade, pois não há verdade nele. Quando mente, fala a sua própria língua, pois é mentiroso e pai da mentira" (João 8:44).
O Diabo é o grande ilusionista. Ele enverniza a verdade: "Se afirmarmos que estamos sem pecado, enganamos a nós mesmos, e a verdade não está em nós" (1 João 1:8). Incita-nos a dar importância ao que não tem importância, veste com falso resplendor o que é menos importante e nos desvia do que é insuperavelmente verdadeiro. O Diabo nos faz viver num mundo de ilusão,
devaneios e sombras.
("Convite à loucura" - Brennan Manning)