quarta-feira, 1 de abril de 2020

FECHAM-SE AS IGREJAS MAS O CULTO CONTINUA - SEM INTERNET

Há quase dez anos eu venho pensando a relação entre religião e ação social, ou, em termos mais próximos da minha realidade evangélica, a relação entre culto de adoração e missão social. Em meio à realidade do Corona Vírus, forçando as igrejas a, acertadamente, cancelarem suas atividades, talvez seja propício falar sobre o conceito de culto nos escritos bíblicos e no início da história cristã. Enquanto pastores buscam alternativas para manter as atividades eclesiásticas de forma remota com o auxílio da tecnologia, o que é totalmente válido, eu sugiro que seria melhor repensar nossa teologia do culto.
Na minha caminhada de descoberta, tudo começou com uma simples, mas importante constatação: a narrativa da criação de Gênesis 1 qualificava todo o cosmo como um grande santuário onde Deus habitava como rei entronizado, portanto um lugar ordenado que gera vida. A partir disso, minhas leituras e pesquisas foram gerando mais evidências e implicações teológicas. Dentre as mais importantes, foi que a mesma tradição bíblica que caracteriza todo o cosmo como um santuário, também caracteriza a construção do Tabernáculo como avanço da própria criação do cosmo. Dessa forma, essa tradição também entendia o culto do Tabernáculo como atividades de preservação e avanço de um cosmo bem ordenado que gera vida. Os pauzinhos que eu fui conectando em minha mente seguiam esta lógica: toda ação que promove a vida no cosmo em que vivemos é um culto de adoração ao Deus que criou, habita e reina sobre o cosmo.
A forma como essa tradição teológica nos escritos bíblicos faz essas relações é um pouco complicada para explicar aqui. Portanto, vou usar dois exemplos simples e claros dessa visão teológica em outras tradições bíblicas. Em Gênesis 2, a responsabilidade humana no cosmo é descrita com dois verbos: “servir” e “guardar” (2.15). Essa responsabilidade, obviamente, diz respeito a como a humanidade deve se relacionar com a criação. O primeiro verbo pode se referir a qualquer tipo de serviço prestado, por isso pode ter conotação mundana de qualquer trabalho (por exemplo, 2Samuel 16.19) ou conotação religiosa quando se trata do serviço prestado a Deus ou deuses (por exemplo, Êxodo 10.7 e Deuteronômio 29.25). O fato de a humanidade estar num jardim, certamente, implica que “cultivar” é exercer atividade agrícola. Assim, trata-se da responsabilidade de trabalhar no jardim, a fim de que este frutifique e se multiplique. Dessa forma, tal atividade humana corresponde com a atividade divina que ordena e abençoa a criação para que esta frutifique, gere e sustente a vida. Portanto, o termo usado aqui, “servir”, aponta para ações mundanas e religiosas ao mesmo tempo. Já o termo “guardar”, além, é claro, de ter o sentido de proteger a criação “guardando” a sua boa ordem estabelecida por Deus, também tem conotações religiosas. Seu significado está relacionado com o “guardar” dos mandamentos de Deus (por exemplo, Êxodo 20.6; Levítico 18.4; Deuteronômio 5.29). Esse significado é importante, porque o relato de Gênesis afirma que o cosmo foi ordenado por meio da palavra, ou mandamento, de Deus. Como o mandamento divino tinha o propósito de ordenar o cosmo para que a vida fosse gerada e sustentada, então quando a humanidade “guarda” a criação, mantendo assim a ordem que gera e sustenta a vida, é também uma forma de “guardar” o mandamento de Deus.
Essa é uma boa conexão com o segundo exemplo que quero dar. Desde os primórdios do cristianismo, há uma discussão sobre a aplicabilidade das leis da Torá para os cristãos. No período da Reforma essa questão foi “solucionada” com uma divisão da lei em três domínios: moral, civil (judicial) e cerimonial (cúltica). Dessas, somente as leis morais são aplicáveis aos cristãos. O problema é que tal divisão é artificial. Para o propósito daquilo que quero comunicar neste texto, vou explicar isso da seguinte maneira. O Antigo Testamento sugere alguns fundamentos para suas leis: o senhorio de Deus sobre Israel (algo como, “Eu sou Javé, seu Deus, portanto…”), a ação redentora de Deus sobre Israel (algo como, “Eu sou Javé, seu Deus, que tirou você do Egito, portanto…”) e a santidade de Deus (algo como, “Façam isso porque eu sou santo…”). Com tais fundamentos, é claro que toda a vida de Israel é entendida como um grande “serviço” a Deus, ou seja, um grande culto de adoração a Deus.
E o que isso tem a ver com a relação entre culto de adoração e missão social, ou entre religião e ação social? Talvez a melhor forma de explicar isso, que também servirá de implicação prática de tudo que disse até aqui, seja atentando para os dízimos em Levítico e Deuteronômio. O dízimo tem como objetivo assegurar que Israel reconheça a terra e seus frutos como propriedade de Deus, que acolhe Israel em sua terra e lhes dá herança. Os levitas, porém, não tinha propriedades de terra, portanto, não tinham herança. O dízimo, então, servia de “herança” para os que não têm acesso à terra e seus frutos. Por isso, o dízimo era considerado como “santo a Javé” (Levítico 27.30-33).
Duas práticas relacionadas ao dízimo tornam tudo isso muito interessante. Primeiro, grande parte do dízimo era consumida, como uma refeição compartilhada entre levitas e ofertantes. Segundo, além dos levitas, outras pessoas não tinham propriedade de terra, ou seja, “herança” no meio de Israel. Essas pessoas, as viúvas, órfãos e estrangeiros, podiam consumir os frutos da terra, ou seja, dos frutos da “herança”, pelo consumo dos dízimos também. Ainda que em todas as práticas de ofertas de dízimo tal experiência pudesse acontecer, isso foi estabelecido como lei em Deuteronômio 14.28-29 e 26.12-13. A cada três anos, todo o dízimo era entregue aos levitas e a esse grupo “deserdado”. Vejam que interessante isso, considerando o que foi falado antes sobre a criação, o santuário e a responsabilidade da humanidade. A característica da oferta de dízimos é a de culto a Deus no santuário, mas se expressa numa refeição compartilhada entre ofertante, levita e outros “deserdados”, todos desfrutando da bênção de Deus na fertilidade da terra que resulta do “serviço” que a humanidade presta, fazendo com que a vida de todos seja preservada pela boa ordem da criação estabelecida pelo senhorio de Deus na criação e no culto, e preservada pela humanidade, em seu serviço, tanto na atividade agrícola, quanto na atividade litúrgica/ cúltica.
Esse entendimento teológico pode ser visto em algumas falas proféticas do Antigo Testamento, na vida de Jesus, na linguagem de Paulo sobre práticas cristãs e a ética dos primeiros cristãos. Vou dar um exemplo de cada um. As críticas proféticas ao culto de Jerusalém são bem conhecidas (por exemplo, Isaías 1.10-17 e Oseias 6.6). O exemplo que quero usar é de Amós 5.21-24. Eu não acredito que Amós ou os outros profetas fossem contra o culto com seus rituais e sacrifícios. E diante das falas proféticas, também não é suficiente somente dizer que eles são contra a discrepância entre ética, o culto e a vida diária de Israel. Os profetas, como exemplifica o texto de Amós, tendem a estabelecer a prática da justiça como a manifestação de culto e adoração. É a partir dessa visão em que práticas de justiça são vistas como práticas cúlticas que os profetas criticam as atividades cúlticas nos santuários. Conforme vimos sobre o dízimo, as atividades cúlticas nos santuários tinham um caráter ético-social forte. A crítica dos profetas, então, não era ao culto em si, nem à discrepância entre vida diária e culto, mas à perda desse caráter ético do culto. A crítica dos profetas se dá porque o culto deixou de servir para todo o povo, inclusive os “deserdados”, desfrutar das bênçãos do senhorio de Deus sobre o cosmo e a responsabilidade humana de guardar e avançar essa ordem numa refeição pactual. Em vez disso, o culto havia se tornado um momento de afirmação de poder e riqueza de alguns em detrimento de outros, o que implicava na quebra da aliança e da boa ordem da criação. Mas, para os nossos propósitos aqui, é interessante que nessa crítica profética, diante de tal situação dos santuários e do culto, o povo ainda tinha uma alternativa para adorar e cultuar a Deus: praticar a justiça, que significa ações que guardam e avançam a ordem da criação para gerar vida, conforme o senhorio de Deus sobre o cosmo.
Apesar de Jesus, como judeu na Palestina do primeiro século, ter participado das atividades cúlticas no templo de Jerusalém, ele parece compartilhar da visão profética crítica mencionada acima. Dentre algumas possibilidades, a citação de Oséias 6.6 (“Eu [Deus] desejo misericórdia, não sacrifício”) no Evangelho de Mateus é um caso interessante. A citação aparece em Mateus 9.13 e 12.7. Em ambas as ocorrências o contexto é sobre comida, com conotações cúlticas. Eu vou me limitar ao texto de Mateus 9.9-13. Jesus está à mesa, na casa do publicano Mateus, e junta-se a eles um grupo de cobradores de impostos e pecadores. Os fariseus questionam Jesus sobre estar se associando com tais pessoas e aí vem a citação de Oseias 6.6, complementado pelo “eu não vim chamar justos, mas pecadores”. A conotação cúltica está na comunhão de mesa entre ele e pecadores, que Jesus interpreta como o cumprimento da vontade divina de “misericórdia”. Acontece que o termo “misericórdia” em Oseias 6.6 diz respeito ao tipo de solidariedade vinculado à aliança. Assim, Jesus vê nessa comunhão de mesa ordinária, o mesmo significado da comunhão de mesa que acontecia no contexto do culto nos santuários.
No caso de Paulo, são diversos usos de linguagem cúltica para falar sobre seu ministério especificamente e a vida cristã em geral (por exemplo, Romanos 12.1-2). O texto de Filipenses 2.17 é extremamente esclarecedor nesse sentido. Paulo está encarcerado por causa de sua missão. Certamente necessitado de diversos recursos materiais, ele é agraciado por uma oferta proveniente dos cristãos filipenses (4.10-20). Estamos, portanto, lidando com um contexto de compartilhamento de recursos materiais com quem está em sofrimento e necessidade. Agora, veja como Paulo qualifica seu ministério, especificamente no contexto de sofrimento, e a atitude dos filipenses em compartilhar recursos materiais com ele: “Contudo, mesmo que eu entregue a minha vida como oferta de libação derramada sobre o sacrifício do culto de fidelidade de vocês, ainda assim me alegrarei e compartilho com vocês minha alegria” (2.17). Trata-se de uma linguagem explícita e profundamente cúltica para práticas cristãs fora de qualquer santuário ou de qualquer contexto litúrgico. Contudo, é mais do que isso. Essa é uma linguagem que Paulo utiliza para descrever e qualificar ações cristãs de auto-entrega em favor dos outros, em conformidade com a vida sacrifical de Jesus. Essa é uma teologia do culto e da adoração que informa ações de solidariedade e compaixão em meio às necessidades.
Tanto no caso de Jesus, no Evangelho de Mateus, quanto no caso de Paulo, estamos vendo um entendimento de culto e adoração que abrange, acima de tudo, práticas de justiça, misericórdia, solidariedade e compaixão. Mais ainda, trata-se de experiências bem humanas de comunhão de mesa e compartilhamento de recursos materiais. Para entender o porquê disso, é só voltarmos ao que foi dito aqui sobre a criação, a lei e o culto como preservadores e promotores da boa ordem estabelecida pelo senhorio de Deus para gerar e manter a vida de todos. Assim, voltamos, agora com uma linguagem derivada da vida de Jesus, para um entendimento de culto e adoração a partir de práticas de auto-entrega para o benefício dos outros, especialmente os excluídos e necessitados, ou, nos termos da lei e de uma relação de aliança, os “deserdados”.
Por fim, um exemplo dos Pais da Igreja. O material aqui é vasto e a qualificação cúltica da prática cristã ética é comum entre os primeiros cristãos. A autora Susan Holman diz: “O serviço aos pobres é tratado como liturgia [pelos três teólogos da Capadócia, Basílio de Cesareia, Gregório de Nissa e Gregório de Nazianzo]; em outras palavras, é algo tão importante para a verdadeira adoração quanto ir para a igreja” (God Knows There Is Need: Christian Responses to Poverty [Oxford: Oxford University Press, 2009], 69). Mas quero usar o exemplo de João Crisóstomo (348-407). Numa famosa passagem, ele afirma o seguinte: “Você quer ver o seu [de Cristo] altar?… Esse altar é composto dos próprios membros de Cristo… Esse altar você pode ver em todo lugar, nos becos e nos mercados, e você pode oferecer o seu sacrifício sobre ele a qualquer momento… invoque o Espírito não com palavras, mas com obras” (Homília 20 em 2 Coríntios). Crisóstomo está exortando os cristãos a irem ao socorro de gente pobre e necessitada, especialmente outros irmãos cristãos. Ele poderia fazer isso de várias formas. Mas ele escolheu a linguagem cúltica para definir tais práticas de solidariedade e compaixão. Assim, mais uma vez, o compartilhamento de recursos materiais pelos cristãos é qualificado como culto e adoração.
Pois bem, o que podemos aprender disso? Certamente não significa que o culto cristão em igrejas, em determinados dias e horários, seguindo uma determinada liturgia, seja inútil. De forma alguma. Mas também não é suficiente dizer que o culto cristão em igrejas e o culto cristão no mundo são duas formas de o cristão cultuar a Deus. É necessário entender o fundamento do culto e da adoração cristã. A partir desse fundamento, que apresentei da forma mais simples possível aqui, o culto cristão em igrejas e no mundo são uma única coisa. É a união da misericórdia e do sacrifício, usando os termos de Oséias 6.6. Mas para quê um culto em igrejas, então? O culto cristão num espaço e tempo determinados e limitados é a ritualização idealizada da vida cristã no mundo, com o propósito de fomentar nossas mentes e treinar os nossos corpos para o tipo de vida em conformidade com o senhorio de Deus em todo o cosmo. Essa vida cultua e adora a Deus quando gera e mantém vida para todos. É por isso, por exemplo, que eu sou crítico de uma liturgia cristã desvinculada das dinâmicas e experiências da vida diária no mundo. Não é à toa, portanto, que a comunhão de mesa, com comida de verdade, é um ritual cúltico fundamental na teologia do Antigo e do Novo Testamentos. Nessa experiência está envolvida a responsabilidade humana de fomentar a frutificação da terra como bênção de Deus e as dinâmicas sociais de compartilhamento de recursos materiais num contexto de democratização das bênçãos de Deus e da vida. Neste ponto é onde vemos a unicidade do culto na igreja e do culto no mundo.
Quando eu entendi essas coisas, as divisões entre espiritual e material, confissão teológica e vida prática, evangelismo e ação social, adoração e ética, simplesmente caíram por terra, como escamas dos meus olhos, e eu pude enxergar as coisas com uma nova luz. Eu não só deixei de ver essas divisões, como também eliminei a forma como muitos acreditam que se dá a relação dessas coisas. Por exemplo, muito se diz sobre as boas obras serem uma consequência da fé como um aspecto interno do crente. Nessa nova visão da realidade, isso não faz sentido algum. As boas obras, em conformidade com o senhorio de Deus sobre o cosmo que é expressão de sua graça, não são consequência da fé ou reflexo da fé, mas a própria fé. Isso, obviamente, não é salvação pelas obras. Nessa visão, não existe a adoração no culto da igreja, a missão da igreja no mundo e a ética cristã. Elimina-se o “e”, pois tudo é uma coisa só. É bom podermos, comunitariamente, como corpo de Cristo, nos reunir para louvarmos e bendizermos a Deus, participarmos dos sacramentos, orarmos uns pelos outros e pelo mundo, e meditarmos na revelação de Deus? Certamente. Isso não deveria ser exclusividade de nossas reuniões comunitárias num determinado espaço e momento, mas é, de fato, uma característica determinante dessa experiência específica. No entanto, essas práticas e experiências não podem ser entendidas como “verdadeira” adoração e “verdadeiro” culto. Essas coisas precisam estar fundamentadas na visão de culto e adoração que apresentei aqui. Caso contrário, ecoando a crítica profética, elas não são culto nenhum, nem adoração alguma. É provável que o Corona Vírus mantenha as portas das igrejas fechadas por um bom tempo. Contudo, temos diante de nós uma oportunidade rara de cultuarmos e adorarmos a Deus.

 
Fonte: https://www.facebook.com/notes/caio-peres/fecham-se-as-igrejas-mas-o-culto-continua-sem-internet/10159493464888496/?hc_location=ufi

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FECHAM-SE AS IGREJAS MAS O CULTO CONTINUA - SEM INTERNET

Há quase dez anos eu venho pensando a relação entre religião e ação social, ou, em termos mais próximos da minha realidade evangélica, a relação entre culto de adoração e missão social. Em meio à realidade do Corona Vírus, forçando as igrejas a, acertadamente, cancelarem suas atividades, talvez seja propício falar sobre o conceito de culto nos escritos bíblicos e no início da história cristã. Enquanto pastores buscam alternativas para manter as atividades eclesiásticas de forma remota com o auxílio da tecnologia, o que é totalmente válido, eu sugiro que seria melhor repensar nossa teologia do culto.
Na minha caminhada de descoberta, tudo começou com uma simples, mas importante constatação: a narrativa da criação de Gênesis 1 qualificava todo o cosmo como um grande santuário onde Deus habitava como rei entronizado, portanto um lugar ordenado que gera vida. A partir disso, minhas leituras e pesquisas foram gerando mais evidências e implicações teológicas. Dentre as mais importantes, foi que a mesma tradição bíblica que caracteriza todo o cosmo como um santuário, também caracteriza a construção do Tabernáculo como avanço da própria criação do cosmo. Dessa forma, essa tradição também entendia o culto do Tabernáculo como atividades de preservação e avanço de um cosmo bem ordenado que gera vida. Os pauzinhos que eu fui conectando em minha mente seguiam esta lógica: toda ação que promove a vida no cosmo em que vivemos é um culto de adoração ao Deus que criou, habita e reina sobre o cosmo.
A forma como essa tradição teológica nos escritos bíblicos faz essas relações é um pouco complicada para explicar aqui. Portanto, vou usar dois exemplos simples e claros dessa visão teológica em outras tradições bíblicas. Em Gênesis 2, a responsabilidade humana no cosmo é descrita com dois verbos: “servir” e “guardar” (2.15). Essa responsabilidade, obviamente, diz respeito a como a humanidade deve se relacionar com a criação. O primeiro verbo pode se referir a qualquer tipo de serviço prestado, por isso pode ter conotação mundana de qualquer trabalho (por exemplo, 2Samuel 16.19) ou conotação religiosa quando se trata do serviço prestado a Deus ou deuses (por exemplo, Êxodo 10.7 e Deuteronômio 29.25). O fato de a humanidade estar num jardim, certamente, implica que “cultivar” é exercer atividade agrícola. Assim, trata-se da responsabilidade de trabalhar no jardim, a fim de que este frutifique e se multiplique. Dessa forma, tal atividade humana corresponde com a atividade divina que ordena e abençoa a criação para que esta frutifique, gere e sustente a vida. Portanto, o termo usado aqui, “servir”, aponta para ações mundanas e religiosas ao mesmo tempo. Já o termo “guardar”, além, é claro, de ter o sentido de proteger a criação “guardando” a sua boa ordem estabelecida por Deus, também tem conotações religiosas. Seu significado está relacionado com o “guardar” dos mandamentos de Deus (por exemplo, Êxodo 20.6; Levítico 18.4; Deuteronômio 5.29). Esse significado é importante, porque o relato de Gênesis afirma que o cosmo foi ordenado por meio da palavra, ou mandamento, de Deus. Como o mandamento divino tinha o propósito de ordenar o cosmo para que a vida fosse gerada e sustentada, então quando a humanidade “guarda” a criação, mantendo assim a ordem que gera e sustenta a vida, é também uma forma de “guardar” o mandamento de Deus.
Essa é uma boa conexão com o segundo exemplo que quero dar. Desde os primórdios do cristianismo, há uma discussão sobre a aplicabilidade das leis da Torá para os cristãos. No período da Reforma essa questão foi “solucionada” com uma divisão da lei em três domínios: moral, civil (judicial) e cerimonial (cúltica). Dessas, somente as leis morais são aplicáveis aos cristãos. O problema é que tal divisão é artificial. Para o propósito daquilo que quero comunicar neste texto, vou explicar isso da seguinte maneira. O Antigo Testamento sugere alguns fundamentos para suas leis: o senhorio de Deus sobre Israel (algo como, “Eu sou Javé, seu Deus, portanto…”), a ação redentora de Deus sobre Israel (algo como, “Eu sou Javé, seu Deus, que tirou você do Egito, portanto…”) e a santidade de Deus (algo como, “Façam isso porque eu sou santo…”). Com tais fundamentos, é claro que toda a vida de Israel é entendida como um grande “serviço” a Deus, ou seja, um grande culto de adoração a Deus.
E o que isso tem a ver com a relação entre culto de adoração e missão social, ou entre religião e ação social? Talvez a melhor forma de explicar isso, que também servirá de implicação prática de tudo que disse até aqui, seja atentando para os dízimos em Levítico e Deuteronômio. O dízimo tem como objetivo assegurar que Israel reconheça a terra e seus frutos como propriedade de Deus, que acolhe Israel em sua terra e lhes dá herança. Os levitas, porém, não tinha propriedades de terra, portanto, não tinham herança. O dízimo, então, servia de “herança” para os que não têm acesso à terra e seus frutos. Por isso, o dízimo era considerado como “santo a Javé” (Levítico 27.30-33).
Duas práticas relacionadas ao dízimo tornam tudo isso muito interessante. Primeiro, grande parte do dízimo era consumida, como uma refeição compartilhada entre levitas e ofertantes. Segundo, além dos levitas, outras pessoas não tinham propriedade de terra, ou seja, “herança” no meio de Israel. Essas pessoas, as viúvas, órfãos e estrangeiros, podiam consumir os frutos da terra, ou seja, dos frutos da “herança”, pelo consumo dos dízimos também. Ainda que em todas as práticas de ofertas de dízimo tal experiência pudesse acontecer, isso foi estabelecido como lei em Deuteronômio 14.28-29 e 26.12-13. A cada três anos, todo o dízimo era entregue aos levitas e a esse grupo “deserdado”. Vejam que interessante isso, considerando o que foi falado antes sobre a criação, o santuário e a responsabilidade da humanidade. A característica da oferta de dízimos é a de culto a Deus no santuário, mas se expressa numa refeição compartilhada entre ofertante, levita e outros “deserdados”, todos desfrutando da bênção de Deus na fertilidade da terra que resulta do “serviço” que a humanidade presta, fazendo com que a vida de todos seja preservada pela boa ordem da criação estabelecida pelo senhorio de Deus na criação e no culto, e preservada pela humanidade, em seu serviço, tanto na atividade agrícola, quanto na atividade litúrgica/ cúltica.
Esse entendimento teológico pode ser visto em algumas falas proféticas do Antigo Testamento, na vida de Jesus, na linguagem de Paulo sobre práticas cristãs e a ética dos primeiros cristãos. Vou dar um exemplo de cada um. As críticas proféticas ao culto de Jerusalém são bem conhecidas (por exemplo, Isaías 1.10-17 e Oseias 6.6). O exemplo que quero usar é de Amós 5.21-24. Eu não acredito que Amós ou os outros profetas fossem contra o culto com seus rituais e sacrifícios. E diante das falas proféticas, também não é suficiente somente dizer que eles são contra a discrepância entre ética, o culto e a vida diária de Israel. Os profetas, como exemplifica o texto de Amós, tendem a estabelecer a prática da justiça como a manifestação de culto e adoração. É a partir dessa visão em que práticas de justiça são vistas como práticas cúlticas que os profetas criticam as atividades cúlticas nos santuários. Conforme vimos sobre o dízimo, as atividades cúlticas nos santuários tinham um caráter ético-social forte. A crítica dos profetas, então, não era ao culto em si, nem à discrepância entre vida diária e culto, mas à perda desse caráter ético do culto. A crítica dos profetas se dá porque o culto deixou de servir para todo o povo, inclusive os “deserdados”, desfrutar das bênçãos do senhorio de Deus sobre o cosmo e a responsabilidade humana de guardar e avançar essa ordem numa refeição pactual. Em vez disso, o culto havia se tornado um momento de afirmação de poder e riqueza de alguns em detrimento de outros, o que implicava na quebra da aliança e da boa ordem da criação. Mas, para os nossos propósitos aqui, é interessante que nessa crítica profética, diante de tal situação dos santuários e do culto, o povo ainda tinha uma alternativa para adorar e cultuar a Deus: praticar a justiça, que significa ações que guardam e avançam a ordem da criação para gerar vida, conforme o senhorio de Deus sobre o cosmo.
Apesar de Jesus, como judeu na Palestina do primeiro século, ter participado das atividades cúlticas no templo de Jerusalém, ele parece compartilhar da visão profética crítica mencionada acima. Dentre algumas possibilidades, a citação de Oséias 6.6 (“Eu [Deus] desejo misericórdia, não sacrifício”) no Evangelho de Mateus é um caso interessante. A citação aparece em Mateus 9.13 e 12.7. Em ambas as ocorrências o contexto é sobre comida, com conotações cúlticas. Eu vou me limitar ao texto de Mateus 9.9-13. Jesus está à mesa, na casa do publicano Mateus, e junta-se a eles um grupo de cobradores de impostos e pecadores. Os fariseus questionam Jesus sobre estar se associando com tais pessoas e aí vem a citação de Oseias 6.6, complementado pelo “eu não vim chamar justos, mas pecadores”. A conotação cúltica está na comunhão de mesa entre ele e pecadores, que Jesus interpreta como o cumprimento da vontade divina de “misericórdia”. Acontece que o termo “misericórdia” em Oseias 6.6 diz respeito ao tipo de solidariedade vinculado à aliança. Assim, Jesus vê nessa comunhão de mesa ordinária, o mesmo significado da comunhão de mesa que acontecia no contexto do culto nos santuários.
No caso de Paulo, são diversos usos de linguagem cúltica para falar sobre seu ministério especificamente e a vida cristã em geral (por exemplo, Romanos 12.1-2). O texto de Filipenses 2.17 é extremamente esclarecedor nesse sentido. Paulo está encarcerado por causa de sua missão. Certamente necessitado de diversos recursos materiais, ele é agraciado por uma oferta proveniente dos cristãos filipenses (4.10-20). Estamos, portanto, lidando com um contexto de compartilhamento de recursos materiais com quem está em sofrimento e necessidade. Agora, veja como Paulo qualifica seu ministério, especificamente no contexto de sofrimento, e a atitude dos filipenses em compartilhar recursos materiais com ele: “Contudo, mesmo que eu entregue a minha vida como oferta de libação derramada sobre o sacrifício do culto de fidelidade de vocês, ainda assim me alegrarei e compartilho com vocês minha alegria” (2.17). Trata-se de uma linguagem explícita e profundamente cúltica para práticas cristãs fora de qualquer santuário ou de qualquer contexto litúrgico. Contudo, é mais do que isso. Essa é uma linguagem que Paulo utiliza para descrever e qualificar ações cristãs de auto-entrega em favor dos outros, em conformidade com a vida sacrifical de Jesus. Essa é uma teologia do culto e da adoração que informa ações de solidariedade e compaixão em meio às necessidades.
Tanto no caso de Jesus, no Evangelho de Mateus, quanto no caso de Paulo, estamos vendo um entendimento de culto e adoração que abrange, acima de tudo, práticas de justiça, misericórdia, solidariedade e compaixão. Mais ainda, trata-se de experiências bem humanas de comunhão de mesa e compartilhamento de recursos materiais. Para entender o porquê disso, é só voltarmos ao que foi dito aqui sobre a criação, a lei e o culto como preservadores e promotores da boa ordem estabelecida pelo senhorio de Deus para gerar e manter a vida de todos. Assim, voltamos, agora com uma linguagem derivada da vida de Jesus, para um entendimento de culto e adoração a partir de práticas de auto-entrega para o benefício dos outros, especialmente os excluídos e necessitados, ou, nos termos da lei e de uma relação de aliança, os “deserdados”.
Por fim, um exemplo dos Pais da Igreja. O material aqui é vasto e a qualificação cúltica da prática cristã ética é comum entre os primeiros cristãos. A autora Susan Holman diz: “O serviço aos pobres é tratado como liturgia [pelos três teólogos da Capadócia, Basílio de Cesareia, Gregório de Nissa e Gregório de Nazianzo]; em outras palavras, é algo tão importante para a verdadeira adoração quanto ir para a igreja” (God Knows There Is Need: Christian Responses to Poverty [Oxford: Oxford University Press, 2009], 69). Mas quero usar o exemplo de João Crisóstomo (348-407). Numa famosa passagem, ele afirma o seguinte: “Você quer ver o seu [de Cristo] altar?… Esse altar é composto dos próprios membros de Cristo… Esse altar você pode ver em todo lugar, nos becos e nos mercados, e você pode oferecer o seu sacrifício sobre ele a qualquer momento… invoque o Espírito não com palavras, mas com obras” (Homília 20 em 2 Coríntios). Crisóstomo está exortando os cristãos a irem ao socorro de gente pobre e necessitada, especialmente outros irmãos cristãos. Ele poderia fazer isso de várias formas. Mas ele escolheu a linguagem cúltica para definir tais práticas de solidariedade e compaixão. Assim, mais uma vez, o compartilhamento de recursos materiais pelos cristãos é qualificado como culto e adoração.
Pois bem, o que podemos aprender disso? Certamente não significa que o culto cristão em igrejas, em determinados dias e horários, seguindo uma determinada liturgia, seja inútil. De forma alguma. Mas também não é suficiente dizer que o culto cristão em igrejas e o culto cristão no mundo são duas formas de o cristão cultuar a Deus. É necessário entender o fundamento do culto e da adoração cristã. A partir desse fundamento, que apresentei da forma mais simples possível aqui, o culto cristão em igrejas e no mundo são uma única coisa. É a união da misericórdia e do sacrifício, usando os termos de Oséias 6.6. Mas para quê um culto em igrejas, então? O culto cristão num espaço e tempo determinados e limitados é a ritualização idealizada da vida cristã no mundo, com o propósito de fomentar nossas mentes e treinar os nossos corpos para o tipo de vida em conformidade com o senhorio de Deus em todo o cosmo. Essa vida cultua e adora a Deus quando gera e mantém vida para todos. É por isso, por exemplo, que eu sou crítico de uma liturgia cristã desvinculada das dinâmicas e experiências da vida diária no mundo. Não é à toa, portanto, que a comunhão de mesa, com comida de verdade, é um ritual cúltico fundamental na teologia do Antigo e do Novo Testamentos. Nessa experiência está envolvida a responsabilidade humana de fomentar a frutificação da terra como bênção de Deus e as dinâmicas sociais de compartilhamento de recursos materiais num contexto de democratização das bênçãos de Deus e da vida. Neste ponto é onde vemos a unicidade do culto na igreja e do culto no mundo.
Quando eu entendi essas coisas, as divisões entre espiritual e material, confissão teológica e vida prática, evangelismo e ação social, adoração e ética, simplesmente caíram por terra, como escamas dos meus olhos, e eu pude enxergar as coisas com uma nova luz. Eu não só deixei de ver essas divisões, como também eliminei a forma como muitos acreditam que se dá a relação dessas coisas. Por exemplo, muito se diz sobre as boas obras serem uma consequência da fé como um aspecto interno do crente. Nessa nova visão da realidade, isso não faz sentido algum. As boas obras, em conformidade com o senhorio de Deus sobre o cosmo que é expressão de sua graça, não são consequência da fé ou reflexo da fé, mas a própria fé. Isso, obviamente, não é salvação pelas obras. Nessa visão, não existe a adoração no culto da igreja, a missão da igreja no mundo e a ética cristã. Elimina-se o “e”, pois tudo é uma coisa só. É bom podermos, comunitariamente, como corpo de Cristo, nos reunir para louvarmos e bendizermos a Deus, participarmos dos sacramentos, orarmos uns pelos outros e pelo mundo, e meditarmos na revelação de Deus? Certamente. Isso não deveria ser exclusividade de nossas reuniões comunitárias num determinado espaço e momento, mas é, de fato, uma característica determinante dessa experiência específica. No entanto, essas práticas e experiências não podem ser entendidas como “verdadeira” adoração e “verdadeiro” culto. Essas coisas precisam estar fundamentadas na visão de culto e adoração que apresentei aqui. Caso contrário, ecoando a crítica profética, elas não são culto nenhum, nem adoração alguma. É provável que o Corona Vírus mantenha as portas das igrejas fechadas por um bom tempo. Contudo, temos diante de nós uma oportunidade rara de cultuarmos e adorarmos a Deus.

 
Fonte: https://www.facebook.com/notes/caio-peres/fecham-se-as-igrejas-mas-o-culto-continua-sem-internet/10159493464888496/?hc_location=ufi