sábado, 29 de dezembro de 2018

Tudo tem limite


Sim, meus amigos, tudo na vida tem limite: o saldo na sua conta bancária, a sua paciência, os livros em sua estante, o cartão de crédito (‘Malditos Ewoks’), a sua estabilidade emocional, a disposição em ouvir e sorrir educadamente para seu interlocutor, o número de vezes que se vê na mesma situação tendo que oferecer as mesmas explicações somente para manter a paz e a harmonia neste planeta...
Pena que quando o limite está fora de nós, temos de nos virar nos trinta e seja o que Deus quiser, já que a situação foge ao nosso controle, ainda que possivelmente faça parte de consequências diretas ou indiretas de decisões, palavras e/ou ações nossas, i.e., de nossa responsabilidade.
Mas, quando o limite expirado está em nós, e nos vemos engalfinhados numa luta previamente perdida, ridicularizados por nossa própria falta de controle, expostos, trazidos à realidade por choques letais de adrenalina que a pressão geralmente tende a nos aplicar de vez em quando, por vezes nos encontramos num ponto em que desejamos correr, gritar ou somente tatuar bem no meio da testa alheia a frase: ‘tudo tem limite’.
Este mês o dinheiro apertou, o jogo de cintura foi grande, mas as coisas foram sendo levadas. Aparentemente tudo bem, até um momento (nem sei determinar bem quando, nem sei bem onde), quando o limite acabou. Trabalhar de graça foi um fenômeno muito comum durante um período que durou em torno de vinte anos de minha vida. E muitas pessoas ainda me diziam: ‘mas a Igreja te pagava’, ‘a Missão tal te sustentava’, ‘as pessoas te davam oferta’, e tantas outras coisas eu ouvi como se nunca tivesse movido uma palha, como se não tivesse estudado, trabalhado e nem me esforçado, e ainda assim vivia como que constantemente pedindo ‘esmola’ para viver, ouvindo reclamações de um lado, que não tinham obrigações a meu respeito, pedindo, insinuando, dependendo, controlando para ‘não esbanjar dinheiro alheio’, como que constantemente prestando contas e relatórios, ao ponto de chegar a colecionar envelopes e mais envelopes de recibos de tudo o que eu comprava, de tudo o que eu comia. As neuroses começaram a se multiplicar e as recriminações também. É claro que os inúmeros cursos de administração financeira surgiram (a um preço, obviamente), e me vi num ciclo vicioso de pedir, anotar procedência, somar, utilizar, anotar gastos e comprovantes, prestar contas, fotografar para comprovar, e assim sucessivamente, para evitar desconfianças.
E foi assim que iniciei minhas barganhas, trocando valores calóricos de minha alimentação por material escolar aos alunos, invertendo papéis, sustentando o insustentável, adoecendo e finalmente descobrindo que minha saúde também tem limite. E como tem. Limites e mais limites que me desafiam diariamente na postura da vítima/não vítima das circunstâncias. Ora tenho que me posicionar e não me dar por vencida, me fazer de forte, fazer meu trabalho a despeito da dor física ou na alma, ora tentando impor os limites ao redor para me dar o direito de me prostrar, pedir ajuda, pedir um tempo, pedir socorro, apenas pedir, sem ter que me explicar.
E nesse redemoinho de limitações físicas e emocionais ainda ter de ouvir certas coisas, ter de manter o sorriso amigável, os compromissos assumidos, vestir o papel de ignorante e seguir em frente como se nada estivesse acontecendo, como se andar mais uma milha fosse coisa passageira, quando o que, na verdade se percebe, é que a luz no fim do túnel não existe, bem como a previsão de chegada, mesmo que tudo tenha limite nesta vida.
Pensei ter vencido a etapa dos limites financeiros quando ganhei a bolsa do Mestrado, mas o que encontrei foram novos limites aos quais preciso me adaptar para viver, novas disciplinas, novos horizontes e novos planos. São desafios constantes para que eu não caia nos mesmos erros do passado, com o diferencial de que não preciso ‘mendigar’ valores que me são prometidos em contrato, ainda que de vez em quando tenha de lembrar das datas de vencimento. Pensei estar alargando limites ao, esporadicamente, ofertar aulas particulares de língua estrangeira, cursos livres, prestar serviços aqui e ali sem vínculo empregatício, mas os limites são tantos que já me vejo num deja vu dos tempos em que me prometeram uma coisa e fizeram outra, como se essa lição eu não tivesse aprendido e estivesse em plena prova de recuperação.
São horas de trabalho que ainda não me trazem retorno financeiro, são compromissos assumidos, planos de aula jogados no lixo porque cancelaram em cima da hora, não dava para marcar outra coisa, tempo e dinheiro desperdiçados, saúde que escorre pelo ralo, e não há como me fazer entender quando os limites são meus, inteiramente meus.
E quando se projetam os valores para o macro, é um casamento que não consegui manter, um filho que ainda não consegui ter, uma casa que não consigo comprar, uma conta que não deu prá pagar, uma noite atrás da outra que não consigo dormir, e a voz vai me sumindo porque um segundo siso na boca vai surgindo e, sabe lá Deus o porquê de tudo isso, como um elástico me vejo esticada, com medo de ser solta e levar comigo muita gente machucada. Meu Deus, tudo tem limite.
Eu sei que tudo o que existe neste mundo tem limite. E posso atentar filosoficamente para o fato de que Deus simplesmente não existe, Ele é, acima de tudo e de todos, e que por esse motivo é ilimitado em si mesmo. Sei que tudo o que tenho e ainda sou não é fruto de minhas limitações, é graça ilimitada desse mesmo Deus.
Por isso, apesar de desejar ardentemente escrever uma crônica mais alegre, ainda me encontro cercada numa visão um tanto quanto limitada da vida, esperançosa de um dia expandir os horizontes e ser bem mais otimista ao escrever. Por hora, faço-me de desentendida de mim mesma, limitada em minha paciência e condição física. A asma que limita até o ar que eu respiro me lembra do quão valiosos são os momentos que passo chorando de tanto rir em família, ou de quão maravilhoso é o semblante do aluno que acabou de ter uma descoberta pessoal em meio à enchente de palavras que acabei de derramar em sua cabeça – essa é a prova de que não há limites para as misericórdias de Deus, que insiste em agir em ambientes tão limitados como a vida de um ser humano tão miserável como o que sou.
Angela Natel
Crônicas de uma Divorciada - Abril de 2014

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Tudo tem limite


Sim, meus amigos, tudo na vida tem limite: o saldo na sua conta bancária, a sua paciência, os livros em sua estante, o cartão de crédito (‘Malditos Ewoks’), a sua estabilidade emocional, a disposição em ouvir e sorrir educadamente para seu interlocutor, o número de vezes que se vê na mesma situação tendo que oferecer as mesmas explicações somente para manter a paz e a harmonia neste planeta...
Pena que quando o limite está fora de nós, temos de nos virar nos trinta e seja o que Deus quiser, já que a situação foge ao nosso controle, ainda que possivelmente faça parte de consequências diretas ou indiretas de decisões, palavras e/ou ações nossas, i.e., de nossa responsabilidade.
Mas, quando o limite expirado está em nós, e nos vemos engalfinhados numa luta previamente perdida, ridicularizados por nossa própria falta de controle, expostos, trazidos à realidade por choques letais de adrenalina que a pressão geralmente tende a nos aplicar de vez em quando, por vezes nos encontramos num ponto em que desejamos correr, gritar ou somente tatuar bem no meio da testa alheia a frase: ‘tudo tem limite’.
Este mês o dinheiro apertou, o jogo de cintura foi grande, mas as coisas foram sendo levadas. Aparentemente tudo bem, até um momento (nem sei determinar bem quando, nem sei bem onde), quando o limite acabou. Trabalhar de graça foi um fenômeno muito comum durante um período que durou em torno de vinte anos de minha vida. E muitas pessoas ainda me diziam: ‘mas a Igreja te pagava’, ‘a Missão tal te sustentava’, ‘as pessoas te davam oferta’, e tantas outras coisas eu ouvi como se nunca tivesse movido uma palha, como se não tivesse estudado, trabalhado e nem me esforçado, e ainda assim vivia como que constantemente pedindo ‘esmola’ para viver, ouvindo reclamações de um lado, que não tinham obrigações a meu respeito, pedindo, insinuando, dependendo, controlando para ‘não esbanjar dinheiro alheio’, como que constantemente prestando contas e relatórios, ao ponto de chegar a colecionar envelopes e mais envelopes de recibos de tudo o que eu comprava, de tudo o que eu comia. As neuroses começaram a se multiplicar e as recriminações também. É claro que os inúmeros cursos de administração financeira surgiram (a um preço, obviamente), e me vi num ciclo vicioso de pedir, anotar procedência, somar, utilizar, anotar gastos e comprovantes, prestar contas, fotografar para comprovar, e assim sucessivamente, para evitar desconfianças.
E foi assim que iniciei minhas barganhas, trocando valores calóricos de minha alimentação por material escolar aos alunos, invertendo papéis, sustentando o insustentável, adoecendo e finalmente descobrindo que minha saúde também tem limite. E como tem. Limites e mais limites que me desafiam diariamente na postura da vítima/não vítima das circunstâncias. Ora tenho que me posicionar e não me dar por vencida, me fazer de forte, fazer meu trabalho a despeito da dor física ou na alma, ora tentando impor os limites ao redor para me dar o direito de me prostrar, pedir ajuda, pedir um tempo, pedir socorro, apenas pedir, sem ter que me explicar.
E nesse redemoinho de limitações físicas e emocionais ainda ter de ouvir certas coisas, ter de manter o sorriso amigável, os compromissos assumidos, vestir o papel de ignorante e seguir em frente como se nada estivesse acontecendo, como se andar mais uma milha fosse coisa passageira, quando o que, na verdade se percebe, é que a luz no fim do túnel não existe, bem como a previsão de chegada, mesmo que tudo tenha limite nesta vida.
Pensei ter vencido a etapa dos limites financeiros quando ganhei a bolsa do Mestrado, mas o que encontrei foram novos limites aos quais preciso me adaptar para viver, novas disciplinas, novos horizontes e novos planos. São desafios constantes para que eu não caia nos mesmos erros do passado, com o diferencial de que não preciso ‘mendigar’ valores que me são prometidos em contrato, ainda que de vez em quando tenha de lembrar das datas de vencimento. Pensei estar alargando limites ao, esporadicamente, ofertar aulas particulares de língua estrangeira, cursos livres, prestar serviços aqui e ali sem vínculo empregatício, mas os limites são tantos que já me vejo num deja vu dos tempos em que me prometeram uma coisa e fizeram outra, como se essa lição eu não tivesse aprendido e estivesse em plena prova de recuperação.
São horas de trabalho que ainda não me trazem retorno financeiro, são compromissos assumidos, planos de aula jogados no lixo porque cancelaram em cima da hora, não dava para marcar outra coisa, tempo e dinheiro desperdiçados, saúde que escorre pelo ralo, e não há como me fazer entender quando os limites são meus, inteiramente meus.
E quando se projetam os valores para o macro, é um casamento que não consegui manter, um filho que ainda não consegui ter, uma casa que não consigo comprar, uma conta que não deu prá pagar, uma noite atrás da outra que não consigo dormir, e a voz vai me sumindo porque um segundo siso na boca vai surgindo e, sabe lá Deus o porquê de tudo isso, como um elástico me vejo esticada, com medo de ser solta e levar comigo muita gente machucada. Meu Deus, tudo tem limite.
Eu sei que tudo o que existe neste mundo tem limite. E posso atentar filosoficamente para o fato de que Deus simplesmente não existe, Ele é, acima de tudo e de todos, e que por esse motivo é ilimitado em si mesmo. Sei que tudo o que tenho e ainda sou não é fruto de minhas limitações, é graça ilimitada desse mesmo Deus.
Por isso, apesar de desejar ardentemente escrever uma crônica mais alegre, ainda me encontro cercada numa visão um tanto quanto limitada da vida, esperançosa de um dia expandir os horizontes e ser bem mais otimista ao escrever. Por hora, faço-me de desentendida de mim mesma, limitada em minha paciência e condição física. A asma que limita até o ar que eu respiro me lembra do quão valiosos são os momentos que passo chorando de tanto rir em família, ou de quão maravilhoso é o semblante do aluno que acabou de ter uma descoberta pessoal em meio à enchente de palavras que acabei de derramar em sua cabeça – essa é a prova de que não há limites para as misericórdias de Deus, que insiste em agir em ambientes tão limitados como a vida de um ser humano tão miserável como o que sou.
Angela Natel
Crônicas de uma Divorciada - Abril de 2014