Definindo os termos para termos um debate honesto...
Tem um vídeo viralizando entre o pessoal de direita (ou anti-esquerda, enfim) de uma mulher (não sei o nome dela) falando acerca da situação política da América Latina, alegando que o "socialismo do século XXI" tem crescido em nossas terras e como a Europa pode ajudar o "liberalismo" a se consolidar por aqui. Ela fala com uma linguagem fácil, e, sem estabelecer algum critério conceitual qualificado, sem definir melhor os termos, seria difícil discordar dela. Bom, até seria, mas quem se propor a analisar o contexto histórico e social da América Latina poderá reconhecer os problemas da fala dessa mulher.
Antes de prosseguir esse texto, é preciso definir alguns termos/conceitos, visto que o que mais se vê é o uso de termos iguais com significados distintos. Uma pena que, efetivamente, poucos dos que acreditaram nesse vídeo irão se propor a fazer um debate qualificado de termos, ou a ler um "textão" como esse que escrevo. Gostaria de conseguir resumir todas as seguintes palavras em um meme, ou em frases feitas e fáceis, mas uma reflexão séria impede essa alternativa. Dito isto, tenho consciência que esse texto que escrevo agora foge aos padrões das redes sociais, pois é muito extenso. Sei, portanto, que é um texto que "nasce morto" em diversos aspectos, pois poucos terão paciência de ler, ainda mais aqueles que seriam o público alvo, a saber, os que têm compartilhado o referido vídeo. Ainda assim, por mais quixotesca que seja essa empreitada, creio ser preciso segui-la, mesmo que seja "apenas" para ajudar alguns poucos a terem mais elementos em eventuais debates. Vamos lá, então, às definições:
_ Liberalismo: ideologia desenvolvida principalmente entre os séculos XVIII e XIX, que possui um viés político e econômico. Seu aspecto político afirma a importância dos direitos individuais, como a "vida, liberdade e propriedade". De certa forma, o liberalismo político é o sistema vigente que temos no ocidente, com sistemas representativos na chamada Democracia Liberal. O aspecto econômico do liberalismo é o mais debatido, tendo passado por várias escolas teóricas. Em sua origem, essa teoria afirma que o desenvolvimento econômico de uma sociedade depende de um livre mercado, uma prática de trocas livres em que cada um, ao buscar seus próprios interesses, tende a promover (por meio de uma "mão invisível") o bem coletivo. Nessa teoria, a live concorrência é essencial, pois estimula o desenvolvimento contínuo do trabalho e da produção. A economia liberal passou por diversas críticas no decorrer do século XX, e, de certa forma, tem sido o modelo hegemônico ou almejado por diversos países.
_ Socialismo: o termo socialismo chegou a ter usos bem distintos, mas sempre girando em torno de uma supremacia dos interesses coletivos sobre os interesses individuais. Muitos movimentos nacionalistas na segunda metade do século XIX (de consolidação de Estados Nacionais, visto que ainda não existiam alguns "países" da atualidade) utilizaram esse conceito, associando a ideia de "socialismo" à de formação de uma "sociedade nacional". De toda forma, o conceito e a ideologia do socialismo surgiu e se desenvolveu na primeira metade do século XIX, sendo que os primeiros teóricos socialistas eram críticos do sistema econômico liberal, pois entendiam que essa nova organização econômica produzia por um lado a concentração de riquezas nas mãos de poucos, e por outro lado aumentava a situação de miséria à maioria da população. Assim, os socialistas defendiam que era preciso organizar o movimento operário para conseguir mudanças e melhoria de condições de vida e trabalho a essa classe recém formada. Karl Marx, sem dúvida o maior teórico do socialismo, afirmava que o liberalismo era uma ideologia proposta pela burguesia e beneficiava apenas a essa classe. Logo, esse sistema não garantia a defesa da vida, liberdade e propriedade para todos, e sim para a burguesia, que precisava excluir a classe operária desses "direitos" para garantir seus privilégios. Marx propunha uma Revolução para encerrar a ordem social e econômica da burguesia e instaurar uma nova ordem, voltada aos trabalhadores e dirigida por eles. O Estado e toda organização jurídica deveriam ser abolidos, visto que só garantiam os interesses burgueses. A nova ordem estabelecida pelos trabalhadores deveria socializar os meios de produção, daí não haveria mais classes sociais nem exploração do trabalho. Os socialistas sempre se dividiram em diversos segmentos, divergindo seja na forma de compreensão dos problemas sociais e econômicos quanto na escolha de melhor estratégia para se combater a ordem burguesa. Dentre as várias divisões entre os socialistas, vale a pena destacar a que ocorreu no início do século XX, entre os reformistas (defensores de transformações sociais por meio de eleições e reformas por meio do Estado, reduzindo desigualdades sociais e a injustiça por meio de políticas públicas) e os revolucionários (defensores da luta armada para tomar o poder e instaurar a ditadura do proletariado, para assim alcançar a sociedade sem classes). Os reformistas, em geral, ficaram conhecidos como social-democratas.
_ Capitalismo: o conceito de capitalismo tem muitos usos, e seu desenvolvimento está diretamente relacionado ao Liberalismo Econômico, mas não restrito ao mesmo. A princípio, o capitalista era associado diretamente à burguesia (ao menos a um segmento dessa classe), sendo a pessoa que vivia de atividades financeiras, seja pelo comércio ou investindo em novos sistemas de produção e buscando sempre o lucro. O sociólogo Max Weber, por exemplo, relaciona o capitalismo a práticas que busquem o lucro, mesmo que seja de um comerciante da Antiguidade. Marx, por sua vez, afirma que só existe o "modo de produção capitalista" a partir do estabelecimento das fábricas após a Revolução Industrial. Esse modo de produção gira em torno do capital, um valor que se valorizava constantemente por meio da exploração do trabalho alheio, sendo que o capitalista é a pessoa que tem os recursos para explorar os trabalhadores, e quanto mais explorar mais lucro vai ter. Segundo essa crítica, a exploração capitalista "mostra a verdadeira cara" do sistema liberal, e não depende de um livre mercado, visto que, na prática, esse mercado é sempre dominado por pequenos grupos, e o "pequeno burguês", salvo exceções, tende a ser "devorado" pela burguesia já consolidada, que estabelece monopólios e evita concorrências. Para o marxismo, o capitalismo NÃO está relacionado necessariamente ao consumo de produtos, a ter dinheiro, às práticas comerciais ou mesmo a obter lucros pessoais por meio do próprio trabalho, e sim ao sistema de produção que aliena e explora o trabalhador em favor de outra classe. Um defensor do Liberalismo Econômico irá dizer que essas práticas são deturpações desse sistema, visto que o monopólio e a exploração têm que ser combatidos e são nocivos ao desenvolvimento da sociedade, que precisa da livre concorrência e de um livre mercado. Logo, pelo viés socialista, o capitalismo implica na predominância do poder privado sobre a sociedade, refletindo os interesses dos donos dos meios de produção, e tais interesses geram inevitavelmente monopólios e exploração que beneficiam a poucos; enquanto no viés liberal, se associado ao capitalismo, os interesses privados podem contribuir para o bem da sociedade, só que os monopólios e a exploração seriam desvios do sistema, sendo necessárias ações pontuais do governo para evitar tais deturpações.
_ Direita e Esquerda: esses conceitos surgiram na Revolução Francesa, quando a burguesia encerrou o sistema social feudal (política absolutista e economia mercantilista). O Congresso Nacional na França passou a ser governado pelos burgueses, que, mesmo sendo liberais, se dividiam em virtude de suas diferentes propostas. Aqueles que ficaram na direita da Assembleia eram os mais conservadores, homens da alta burguesia, razoavelmente satisfeitos com a nova ordem estabelecida, daí propunham mais permanências do que mudanças. Aqueles que ficaram na esquerda da Assembleia eram os mais reformistas/revolucionários, homens da baixa burguesia, ainda insatisfeitos com a nova ordem estabelecida, daí propunham mais mudanças do que permanências. No centro ficavam os burgueses indecisos. No decorrer do século XIX os socialistas se apropriaram do conceito de "esquerda", afirmando que quem defendia reais mudanças eram aqueles ligados aos movimentos operários, "empurrando" os burgueses liberais e conservadores para a direita. É possível notar que esses conceitos, em sua origem, são fluídos e possuem vários níveis. Não são blocos monolíticos, e variam mais em função dos seus propósitos do que em função dos seus métodos. Por exemplo: um militante de esquerda pode defender que o Estado deve ser um agente de transformação (os chamados social democratas ou reformistas) ou afirmar que é preciso abolir o Estado para conseguir as transformações (anarquistas); e um militante de direita pode defender a redução da atuação do Estado para permanecer na atual ordem social (liberais), ou a presença maior do Estado para conservar a ordem vigente (os chamados reacionários ou fascistas). Esse exemplo que escolhi não é casual, visto que tem sido comum entre grupos da atualidade, que se denominam de direita, afirmar que a diferença entre esses dois conceitos consiste na defesa da maior atuação do Estado (esquerda) ou em sua redução (direita). O problema desse uso conceitual é que ele deturpa algumas práticas, colocando o fascismo (movimento conservador/reacionário, declaradamente de direita) na esquerda, e o anarquismo (movimento radical de mudanças, declaradamente de esquerda) na direita.
Você, heróico/a leitor/a, que chegou até aqui, tem todo o direito de questionar: "E por que eu tenho que concordar com as suas definições conceituais e não com a de outras pessoas?" Bom, é uma pergunta honesta. Para respondê-la, em primeiro lugar, eu diria que em todos os casos que apresentei, busquei estabelecer a origem histórica desses conceitos, o que nos permite ter uma segurança mais factual. Em segundo lugar, mesmo que seja inegável a arbitrariedade de qualquer conceito, é preciso reconhecer que é preciso um mínimo de precisão para a utilização de tal instrumento, que é sempre limitado, já que busca estabelecer uma compreensão estática de uma realidade que é dinâmica. Para além disso, na maioria dos debates o real problema não é se um conceito está certo ou errado, e sim que os diferentes grupos usam os mesmos conceitos com significados distintos. Em tal circunstância, esses grupos divergentes não estão falando da mesma coisa embora usem os mesmos termos, daí é preciso entender o uso que estão fazendo de determinadas expressões. Dito tudo isso, finalmente podemos retomar o vídeo que muitos têm compartilhado.
A palestrante inicia a fala afirmando que a América Latina sempre foi regida por ditadores, e isso seria um aspecto facilitador para a aceitação da ditadura de Fidel Castro em Cuba. Só esse comentário genérico já traz uma infinidade de problemas históricos. Ela ignora, por exemplo, todo o desenvolvimento latino americano que, diferente da Europa, não contou com a presença de uma sociedade estabelecida em paralelo ao Estado. Entre os europeus, a sociedade civil que se consolidou no século XIX teve diversos conflitos com o Estado, participando aos poucos ao lado ou contra as forma de governo, que não se restringiu apenas aos interesses de elites com o passar do tempo. O Estado Contemporâneo europeu, constitucional e liberal, passou por várias críticas e obstáculos, promovendo direitos políticos (voto, governo representativo etc), civis (liberdade de expressão e manifestação) e sociais (políticas públicas aos desfavorecidos) que foram democratizados aos poucos, não de imediato. Como dito, Estado e sociedade se desenvolveram na Europa de forma paralela, e nos EUA houve um aspecto semelhante. Na América Latina, contudo, o processo foi muito distinto. Aqui, não havia uma sociedade estabelecida, com classes sociais em disputa pelo poder, e sim um Estado que foi imposto verticalmente sem nada em paralelo. Enquanto na Europa houve uma burguesia empreendedora, à revelia, contra ou a favor do Estado, na América Latina isso nunca existiu, pois o Estado sempre monopolizou todos os meios econômicos, sem haver uma sociedade a lhe fazer frente. Na prática, as elites latino-americanas foram os grupos ligados à aristocracia desse Estado formado no decorrer do século XIX, com raros desenvolvimentos alheios ao governo. Houve, é claro, movimentos sociais violentos dos marginalizados, que no geral não colocaram em risco a ordem social estabelecida, que só enfrentava problemas quando havia um conflito interno entre as elites ligadas ao Estado. Desde então se consolidou na América Latina (em especial no Brasil, mas isso pode, com riscos, ser generalizado) um Estado Patrimonialista, constitucional, que sempre teve seus "donos do poder", com leis supostamente para todos, mas com garantia de privilégios a poucos, sem expandir direitos políticos, civis e sociais à sua população. Diferente dos europeus que herdaram uma divisão de "público x privado", na América Latina essa divisão nunca foi clara, e o poder privado/pessoal das elites sempre esteve à frente dos governos, se apropriando das questões que seriam "públicas" e determinando as práticas políticas dos Estados para garantir os próprios privilégios de suas oligarquias, que eventualmente tinham enfrentamentos entre si. Em meio a esses conflitos, com o governo consolidado enquanto um meio de exercer poder, diversas ditaduras ocorreram na América Latina desde que seus Estados se formaram a partir do século XIX. Exceção feita à Colômbia, que, até onde me lembro, nunca teve uma ditadura. Durante boa parte do século XX esse país viveu uma guerra civil entre os políticos liberais e conservadores, ambos da elite, sem haver um Estado efetivo para equilibrar esse conflito, e sim a busca de poder para consolidar um Estado forte. Após décadas, esses partidos entraram em acordo, mas esse conflito foi "transferido", pois grupos radicais sob a influência do marxismo deram continuidade a essa guerra civil de certa forma, formando as FARCs. Logo, não se tratou de uma "cópia" do que ocorreu em Cuba, como a palestrante fala, e sim de uma dinâmica interna de conflitos que, de diferentes modos, afetava diversos países. É claro que o contexto da Guerra Fria é muito importante para se entender toda disputa política na segunda metade do século XX. Nesse contexto, não havia neutralidade possível. Fidel Castro, por exemplo, liderou uma guerrilha para derrubar a ditadura de Fulgêncio Batista (aliado dos EUA), e teve apoio dos comunistas cubanos, mas, a princípio, colocava seu movimento como nacionalista e anti-imperialista. Diferente do que a palestrante diz, Fidel não era um guerrilheiro marxista, sendo que apenas após a tentativa de invasão em Cuba na Baía dos Porcos (financiada pelos EUA) que ele aderiu ao socialismo, se aliou à URSS e recebeu investimentos soviéticos. No Chile, Allende tentou estabelecer um socialismo democrático, não se alinhando à URSS, mas foi derrubado por um Golpe Militar apoiado pelos EUA. No Brasil, João Goulart era tido por comunista, mas era na prática um reformista trabalhista, foi derrubado por um Golpe Civil-Militar apoiado pelos EUA. Pergunto-me onde estavam as tantas guerrilhas marxistas que colocavam em perigo todos esses países, que não conseguiram fazer nada de efetivo para instaurar governos socialistas, nem derrubar as ditaduras que se estabeleceram. Na prática, em alguns desses países as guerrilhas surgiram mais como uma reação à perseguição promovida pelas ditaduras anti-esquerdistas. De toda forma, sem dúvida Cuba era a "vitrine" da URSS na América Latina, recebendo investimentos e promovendo um avanço considerável de direitos sociais, mas não necessariamente de direitos civis ou políticos. O fim da URSS, nesse sentido, prejudicou bastante o governo cubano. Claro que a palestrante não cita um detalhe importante que impedia qualquer tentativa aos cubanos de conseguir outros recursos: o embargo comercial imposto pelos EUA. Não se pode explicar todas os problemas de Cuba por meio do embargo, como alguns tentam fazer, mas já que a palestrante se propõe a debater questões relacionadas ao livre comércio internacional, os cubanos até hoje possuem restrições, ainda que mais brandas do que no passado.
Daí, ela traz o "grande fantasma" dos discursos anti-esquerda: o Foro de São Paulo... Mas o que é essa organização? É uma tentativa de organizar os diversos movimentos e partidos de esquerda em torno de uma agenda em comum. Ok, isso pode ser visto como preocupante a um anti-esquerdista. Contudo, a própria tentativa de organizar uma agenda comum entre os movimentos e partidos de esquerda latino americanos já indica que tais grupos possuem muitas divergências entre si, e tais tentativas nunca obtiveram sucesso. Enquanto a direita acredita que a esquerda tem se organizado para tomar o poder e "instaurar o socialismo", a esquerda briga entre si pelos mais diversos motivos, sem alcançar qualquer unidade, antes, vivendo de cisões atrás de cisões, com poucas concordâncias entre si.
Então a palestrante fala de como a eleição de Chávez em 98 ajudou a manter o regime socialista em Cuba, que passou a ser financiado pelo o venezuelano. Bom, é fato que Chávez fez vários acordos com Cuba, envolvendo comércio e serviços, mas o argumento é tendencioso. Tipo, sempre que os EUA ou a Europa comercializam com países que são ditaduras, isso implica em um apoio do capitalismo a governos ditatoriais? Sem entrar em muitos detalhes ela traz outro pânico: as "narcoguerrilhas marxistas da Colômbia" que quase promoveram o primeiro "Estado narcossocialista" (!?), com o dinheiro das drogas financiando os movimentos socialistas pelo mundo. Bom, vamos com calma. Antes de prosseguir, é preciso ter clareza o uso que ela faz do termo "socialismo", que, no discurso dela, está presente em praticamente toda a América Latina. Apesar de não deixar claro, ela tenta colocar como socialista qualquer governo que exerça um controle econômico, impedindo ou restringindo a liberdade comercial. Logo, se trata de entender pelo viés de maior presença do Estado (esquerda, socialismo) ou menor presença do Estado (direita, liberalismo). Já vimos como esse uso conceitual é problemático. A tentativa dela é dizer que nunca houve um governo de direita na América Latina, daí jogar todos os problemas políticos na conta da esquerda. Ora, os governos de esquerda eleitos na América Latina (Lula, Morales, Kischner, etc) mantiveram seus países no mercado internacional, prevalecendo em diversas áreas a hegemonia do capitalismo e de grandes empresas privadas. Logo, não se trata de socialismo o que esses governos realizaram. O ponto aplicado por eles mais à esquerda está na promoção de políticas públicas de mudanças, auxiliando com direitos sociais principalmente as classes historicamente excluídas pelo sistema, com uma tímida tentativa de fortalecer a sociedade civil nesses países por meio do aumento do poder de compra e consumo (algo que não visava romper com o predomínio do poder privado capitalista). Logo, esse "socialismo do século XXI" a que ela tanto se refere está mais para um capitalismo com algumas preocupações sociais aos mais pobres. Mas voltemos à Colômbia. Como já dito, as guerrilhas socialistas são, de certa forma, uma continuação da antiga Guerra Civil entre liberais e conservadores naquele país, e, para conseguir se manter, muitas das regiões dominadas pelas FARCs tinham relações com o narcotráfico, isso é inegável. Contudo, chama a atenção a caricaturização feita no vídeo. Ora, havia também narcotraficantes contrários às guerrilhas marxistas, além de outras guerrilhas que visavam o combate aos marxistas. Por que os guerrilheiros marxistas são chamados de "narcossocialistas", mas os demais traficantes e guerrilheiros não são chamados de "narcocapitalistas"? Estes últimos defendem o livre mercado e um sistema de produção de fazer inveja em muitas indústrias. Será que o PCC em São Paulo pode ser chamado de facção narcocapitalista? Afinal, querem o monopólio comercial e a ausência do Estado, certo? Logo, a palestrante joga com o medo e informações tendenciosas. Vale pensar também em um ponto: se os EUA são os maiores consumidores do narcotráfico colombiano, podemos dizer que o liberalismo estadunidense apoia o tráfico? Ou só vale a caricatura para atacar o lado adversário?
Sei que esse texto já está enorme, mas estamos quase no fim da análise do vídeo. Nessa parte final, a palestrante fala sobre a ascensão dos governos "neoliberais" (ela usa aspas), e recusa que tais governantes sejam de "direita" (ela usa aspas de novo). Militantes liberais entendem que o conceito de "neoliberalismo" seja um termo equivocado da esquerda, sem validade. Algo semelhante à esquerda, que entende não existir o "marxismo cultural" inventado pela direita. Para além disso, chama a atenção a tentativa em dizer que esses governos não eram de direita pelo fato de não serem liberais, visto que não estimularam um livre mercado e sim um "capitalismo de laços", que privilegiou oligopólios com a privatizações. Na visão dela, só um liberal "clássico" pode ser de direita, e o capitalismo só poderia ser associado ao liberalismo. Por tudo o que já foi exposto, podemos considerar que esses pressupostos dela são problemáticos, insuficientes para analisar os fatos, além de ignorar as especificidades históricas latino americanas. No Brasil do século XIX, por exemplo, o Partido Conservador era defensor do Estado, com um governo centralizado, enquanto o Partido Liberal defendia a redução do Estado, com um governo descentralizado. Bom, os conservadores estavam longe de propor qualquer prática à esquerda. No mais, dadas as definições que propomos, os governos neoliberais/privatistas/com "capitalismo de laços" (expressão dela) ou como queiram chamar, podem ser definidos como de direita mesmo não sendo liberais, e sim por realizarem políticas que visavam mais permanecer a ordem social vigente do que mudá-la. Ainda assim, é possível concordar com ela na afirmação que as privatizações não ocorreram de forma liberal, visto que não estimularam a concorrência e sim o monopólio, e que "jamais existiu um livre mercado na América Latina". Essa última frase é incontestável. Faltou a ela, contudo, uma contextualização histórica, ainda que simplificada, como a que aqui fizemos, para entender o porquê da ausência de um livre mercado na história latino americana. Poderíamos, é claro, questionar: onde e quando existiu um livre mercado, um liberalismo econômico efetivo? José Guilherme Merquior (autor liberal brasileiro, já falecido) afirma que o século XIX representou a "idade de ouro" do movimento liberal (livro: "O liberalismo antigo e moderno", Editora É Realizações, p. 41). Bom, nesse período se consolidaram os Estados liberais, com burguesias nacionais, via de regra, à frente desses movimentos e promovendo o desenvolvimento industrial na Europa. Só que ao mesmo tempo em que o liberalismo se consolidava e a tecnologia revolucionava as relações sociais e econômicas, com um suposto "livre mercado" se consolidando na Europa, também aumentava em níveis nunca vistos a miséria entre os europeus, as imigrações europeias para a América (para fugir das calamidades dos países de origem) e, para evitar as crises econômicas, as potências europeias "liberais" impunham seus domínios sobre vários continentes, na chamada política imperialista, estabelecendo monopólios pelo mundo. Logo, quando falamos em "livre mercado", a questão é: em benefício de quem? Ao contrário do ideal liberal "clássico", na prática nunca existiu um livre mercado em que a concorrência e os interesses individuais tenham promovido o bem para o coletivo, e sim para poucos. Nesse aspecto, certos ideais liberais para a sociedade são quase tão utópicos quanto algumas propostas dos socialistas, também consideradas utópicas pelos seus críticos. Ainda assim, é possível concordar com a palestrante quando ela diz que a culpa de muitos dos problemas sociais da América Latina não é do "livre mercado" (que nunca existiu por aqui), mas isso não exime o capitalismo nem os governos de direita que cá tivemos, mesmo que não sejam de uma linha liberal. Ora, assim como não é lícito culpar o liberalismo por todo problema de um governo de direita, não se deve colocar toda a esquerda em um mesmo pacote, jogando ela toda fora em virtude de alguns problemas maiores ou menores de outros governos de esquerda.
Por fim, ela diz que toda essa situação deixou os latinos "sem saber o que fazer", pois a "direita" (aspas dela) e a esquerda não resolveram os problemas, e a pobreza não foi erradicada e sim multiplicada. Essa conjuntura, ela arremata com frases de efeito, é "a oportunidade para as pessoas que defendem a liberdade e a libertação", visto que a Europa teria demonstrado que "a liberdade [econômica e individual] funciona" como alternativa aos modelos políticos estatistas (que, na visão dela, só podem ser de esquerda, dada a já citada compreensão problemática dela sobre esse conceito). Suas últimas três mensagens à América Latina servem apenas para reafirmar princípios liberais (mais comércio, menos assistencialismo; igualdade jurídica é o que garante o desenvolvimento social, não a igualdade material). Por tudo que foi até aqui exposto, a formação histórica da América Latina, a especificidade de sua sociedade e seu Estado, evidenciam que esses princípios estão longe de terem possibilidade de uma simples aplicação nestas terras, para além de se pensar a validade deles ou não. Outro ponto que ela afirma é que "a Escandinávia não é socialista". Curioso é que, dentro dos padrões estabelecidos por ela, de que a maior presença do Estado marcaria um governo socialista, os escandinavos seriam socialistas, mas, contraditoriamente, e sem tempo para explicar, ela apenas nega dogmaticamente o suposto socialismo aclamado pela esquerda à Escandinávia. Bom, tecnicamente os escandinavos possuem governo social-democratas, em sua maioria, tendo grande importância em alguns desses países os partidos socialistas democráticos, defensores do chamado de Estado de Bem Estar Social, modelo de muitos países europeus na segunda metade do século XX, que estabeleciam um controle maior sobre o mercado e altos impostos que eram revertidos em serviços públicos de qualidade.
Uau... Acabou a análise. Terá valido a pena todo esse exercício de debate conceitual? Fiz tudo isso a pedido de uns amigos, e espero que lhes sirva de algo, ou mesmo a você, heróico/a leitor/a... rs. Bom, se a tentativa de debater de forma qualificada tudo isso for inútil, nos restará o excelente questionamento de Caetano Veloso (música Podres Poderes):
"Será que apenas os hermetismos pascoais,
Os tom's, os miltons, seus sons e seus dons geniais
Nos salvam, nos salvarão dessas trevas
E nada mais?"
Bom, tirem suas conclusões...
Flávio Macedo Pinheiro
https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=1789000124514192&id=100002126661509
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Bom se informar... Texto brilhante.
Definindo os termos para termos um debate honesto...
Tem um vídeo viralizando entre o pessoal de direita (ou anti-esquerda, enfim) de uma mulher (não sei o nome dela) falando acerca da situação política da América Latina, alegando que o "socialismo do século XXI" tem crescido em nossas terras e como a Europa pode ajudar o "liberalismo" a se consolidar por aqui. Ela fala com uma linguagem fácil, e, sem estabelecer algum critério conceitual qualificado, sem definir melhor os termos, seria difícil discordar dela. Bom, até seria, mas quem se propor a analisar o contexto histórico e social da América Latina poderá reconhecer os problemas da fala dessa mulher.
Antes de prosseguir esse texto, é preciso definir alguns termos/conceitos, visto que o que mais se vê é o uso de termos iguais com significados distintos. Uma pena que, efetivamente, poucos dos que acreditaram nesse vídeo irão se propor a fazer um debate qualificado de termos, ou a ler um "textão" como esse que escrevo. Gostaria de conseguir resumir todas as seguintes palavras em um meme, ou em frases feitas e fáceis, mas uma reflexão séria impede essa alternativa. Dito isto, tenho consciência que esse texto que escrevo agora foge aos padrões das redes sociais, pois é muito extenso. Sei, portanto, que é um texto que "nasce morto" em diversos aspectos, pois poucos terão paciência de ler, ainda mais aqueles que seriam o público alvo, a saber, os que têm compartilhado o referido vídeo. Ainda assim, por mais quixotesca que seja essa empreitada, creio ser preciso segui-la, mesmo que seja "apenas" para ajudar alguns poucos a terem mais elementos em eventuais debates. Vamos lá, então, às definições:
_ Liberalismo: ideologia desenvolvida principalmente entre os séculos XVIII e XIX, que possui um viés político e econômico. Seu aspecto político afirma a importância dos direitos individuais, como a "vida, liberdade e propriedade". De certa forma, o liberalismo político é o sistema vigente que temos no ocidente, com sistemas representativos na chamada Democracia Liberal. O aspecto econômico do liberalismo é o mais debatido, tendo passado por várias escolas teóricas. Em sua origem, essa teoria afirma que o desenvolvimento econômico de uma sociedade depende de um livre mercado, uma prática de trocas livres em que cada um, ao buscar seus próprios interesses, tende a promover (por meio de uma "mão invisível") o bem coletivo. Nessa teoria, a live concorrência é essencial, pois estimula o desenvolvimento contínuo do trabalho e da produção. A economia liberal passou por diversas críticas no decorrer do século XX, e, de certa forma, tem sido o modelo hegemônico ou almejado por diversos países.
_ Socialismo: o termo socialismo chegou a ter usos bem distintos, mas sempre girando em torno de uma supremacia dos interesses coletivos sobre os interesses individuais. Muitos movimentos nacionalistas na segunda metade do século XIX (de consolidação de Estados Nacionais, visto que ainda não existiam alguns "países" da atualidade) utilizaram esse conceito, associando a ideia de "socialismo" à de formação de uma "sociedade nacional". De toda forma, o conceito e a ideologia do socialismo surgiu e se desenvolveu na primeira metade do século XIX, sendo que os primeiros teóricos socialistas eram críticos do sistema econômico liberal, pois entendiam que essa nova organização econômica produzia por um lado a concentração de riquezas nas mãos de poucos, e por outro lado aumentava a situação de miséria à maioria da população. Assim, os socialistas defendiam que era preciso organizar o movimento operário para conseguir mudanças e melhoria de condições de vida e trabalho a essa classe recém formada. Karl Marx, sem dúvida o maior teórico do socialismo, afirmava que o liberalismo era uma ideologia proposta pela burguesia e beneficiava apenas a essa classe. Logo, esse sistema não garantia a defesa da vida, liberdade e propriedade para todos, e sim para a burguesia, que precisava excluir a classe operária desses "direitos" para garantir seus privilégios. Marx propunha uma Revolução para encerrar a ordem social e econômica da burguesia e instaurar uma nova ordem, voltada aos trabalhadores e dirigida por eles. O Estado e toda organização jurídica deveriam ser abolidos, visto que só garantiam os interesses burgueses. A nova ordem estabelecida pelos trabalhadores deveria socializar os meios de produção, daí não haveria mais classes sociais nem exploração do trabalho. Os socialistas sempre se dividiram em diversos segmentos, divergindo seja na forma de compreensão dos problemas sociais e econômicos quanto na escolha de melhor estratégia para se combater a ordem burguesa. Dentre as várias divisões entre os socialistas, vale a pena destacar a que ocorreu no início do século XX, entre os reformistas (defensores de transformações sociais por meio de eleições e reformas por meio do Estado, reduzindo desigualdades sociais e a injustiça por meio de políticas públicas) e os revolucionários (defensores da luta armada para tomar o poder e instaurar a ditadura do proletariado, para assim alcançar a sociedade sem classes). Os reformistas, em geral, ficaram conhecidos como social-democratas.
_ Capitalismo: o conceito de capitalismo tem muitos usos, e seu desenvolvimento está diretamente relacionado ao Liberalismo Econômico, mas não restrito ao mesmo. A princípio, o capitalista era associado diretamente à burguesia (ao menos a um segmento dessa classe), sendo a pessoa que vivia de atividades financeiras, seja pelo comércio ou investindo em novos sistemas de produção e buscando sempre o lucro. O sociólogo Max Weber, por exemplo, relaciona o capitalismo a práticas que busquem o lucro, mesmo que seja de um comerciante da Antiguidade. Marx, por sua vez, afirma que só existe o "modo de produção capitalista" a partir do estabelecimento das fábricas após a Revolução Industrial. Esse modo de produção gira em torno do capital, um valor que se valorizava constantemente por meio da exploração do trabalho alheio, sendo que o capitalista é a pessoa que tem os recursos para explorar os trabalhadores, e quanto mais explorar mais lucro vai ter. Segundo essa crítica, a exploração capitalista "mostra a verdadeira cara" do sistema liberal, e não depende de um livre mercado, visto que, na prática, esse mercado é sempre dominado por pequenos grupos, e o "pequeno burguês", salvo exceções, tende a ser "devorado" pela burguesia já consolidada, que estabelece monopólios e evita concorrências. Para o marxismo, o capitalismo NÃO está relacionado necessariamente ao consumo de produtos, a ter dinheiro, às práticas comerciais ou mesmo a obter lucros pessoais por meio do próprio trabalho, e sim ao sistema de produção que aliena e explora o trabalhador em favor de outra classe. Um defensor do Liberalismo Econômico irá dizer que essas práticas são deturpações desse sistema, visto que o monopólio e a exploração têm que ser combatidos e são nocivos ao desenvolvimento da sociedade, que precisa da livre concorrência e de um livre mercado. Logo, pelo viés socialista, o capitalismo implica na predominância do poder privado sobre a sociedade, refletindo os interesses dos donos dos meios de produção, e tais interesses geram inevitavelmente monopólios e exploração que beneficiam a poucos; enquanto no viés liberal, se associado ao capitalismo, os interesses privados podem contribuir para o bem da sociedade, só que os monopólios e a exploração seriam desvios do sistema, sendo necessárias ações pontuais do governo para evitar tais deturpações.
_ Direita e Esquerda: esses conceitos surgiram na Revolução Francesa, quando a burguesia encerrou o sistema social feudal (política absolutista e economia mercantilista). O Congresso Nacional na França passou a ser governado pelos burgueses, que, mesmo sendo liberais, se dividiam em virtude de suas diferentes propostas. Aqueles que ficaram na direita da Assembleia eram os mais conservadores, homens da alta burguesia, razoavelmente satisfeitos com a nova ordem estabelecida, daí propunham mais permanências do que mudanças. Aqueles que ficaram na esquerda da Assembleia eram os mais reformistas/revolucionários, homens da baixa burguesia, ainda insatisfeitos com a nova ordem estabelecida, daí propunham mais mudanças do que permanências. No centro ficavam os burgueses indecisos. No decorrer do século XIX os socialistas se apropriaram do conceito de "esquerda", afirmando que quem defendia reais mudanças eram aqueles ligados aos movimentos operários, "empurrando" os burgueses liberais e conservadores para a direita. É possível notar que esses conceitos, em sua origem, são fluídos e possuem vários níveis. Não são blocos monolíticos, e variam mais em função dos seus propósitos do que em função dos seus métodos. Por exemplo: um militante de esquerda pode defender que o Estado deve ser um agente de transformação (os chamados social democratas ou reformistas) ou afirmar que é preciso abolir o Estado para conseguir as transformações (anarquistas); e um militante de direita pode defender a redução da atuação do Estado para permanecer na atual ordem social (liberais), ou a presença maior do Estado para conservar a ordem vigente (os chamados reacionários ou fascistas). Esse exemplo que escolhi não é casual, visto que tem sido comum entre grupos da atualidade, que se denominam de direita, afirmar que a diferença entre esses dois conceitos consiste na defesa da maior atuação do Estado (esquerda) ou em sua redução (direita). O problema desse uso conceitual é que ele deturpa algumas práticas, colocando o fascismo (movimento conservador/reacionário, declaradamente de direita) na esquerda, e o anarquismo (movimento radical de mudanças, declaradamente de esquerda) na direita.
Você, heróico/a leitor/a, que chegou até aqui, tem todo o direito de questionar: "E por que eu tenho que concordar com as suas definições conceituais e não com a de outras pessoas?" Bom, é uma pergunta honesta. Para respondê-la, em primeiro lugar, eu diria que em todos os casos que apresentei, busquei estabelecer a origem histórica desses conceitos, o que nos permite ter uma segurança mais factual. Em segundo lugar, mesmo que seja inegável a arbitrariedade de qualquer conceito, é preciso reconhecer que é preciso um mínimo de precisão para a utilização de tal instrumento, que é sempre limitado, já que busca estabelecer uma compreensão estática de uma realidade que é dinâmica. Para além disso, na maioria dos debates o real problema não é se um conceito está certo ou errado, e sim que os diferentes grupos usam os mesmos conceitos com significados distintos. Em tal circunstância, esses grupos divergentes não estão falando da mesma coisa embora usem os mesmos termos, daí é preciso entender o uso que estão fazendo de determinadas expressões. Dito tudo isso, finalmente podemos retomar o vídeo que muitos têm compartilhado.
A palestrante inicia a fala afirmando que a América Latina sempre foi regida por ditadores, e isso seria um aspecto facilitador para a aceitação da ditadura de Fidel Castro em Cuba. Só esse comentário genérico já traz uma infinidade de problemas históricos. Ela ignora, por exemplo, todo o desenvolvimento latino americano que, diferente da Europa, não contou com a presença de uma sociedade estabelecida em paralelo ao Estado. Entre os europeus, a sociedade civil que se consolidou no século XIX teve diversos conflitos com o Estado, participando aos poucos ao lado ou contra as forma de governo, que não se restringiu apenas aos interesses de elites com o passar do tempo. O Estado Contemporâneo europeu, constitucional e liberal, passou por várias críticas e obstáculos, promovendo direitos políticos (voto, governo representativo etc), civis (liberdade de expressão e manifestação) e sociais (políticas públicas aos desfavorecidos) que foram democratizados aos poucos, não de imediato. Como dito, Estado e sociedade se desenvolveram na Europa de forma paralela, e nos EUA houve um aspecto semelhante. Na América Latina, contudo, o processo foi muito distinto. Aqui, não havia uma sociedade estabelecida, com classes sociais em disputa pelo poder, e sim um Estado que foi imposto verticalmente sem nada em paralelo. Enquanto na Europa houve uma burguesia empreendedora, à revelia, contra ou a favor do Estado, na América Latina isso nunca existiu, pois o Estado sempre monopolizou todos os meios econômicos, sem haver uma sociedade a lhe fazer frente. Na prática, as elites latino-americanas foram os grupos ligados à aristocracia desse Estado formado no decorrer do século XIX, com raros desenvolvimentos alheios ao governo. Houve, é claro, movimentos sociais violentos dos marginalizados, que no geral não colocaram em risco a ordem social estabelecida, que só enfrentava problemas quando havia um conflito interno entre as elites ligadas ao Estado. Desde então se consolidou na América Latina (em especial no Brasil, mas isso pode, com riscos, ser generalizado) um Estado Patrimonialista, constitucional, que sempre teve seus "donos do poder", com leis supostamente para todos, mas com garantia de privilégios a poucos, sem expandir direitos políticos, civis e sociais à sua população. Diferente dos europeus que herdaram uma divisão de "público x privado", na América Latina essa divisão nunca foi clara, e o poder privado/pessoal das elites sempre esteve à frente dos governos, se apropriando das questões que seriam "públicas" e determinando as práticas políticas dos Estados para garantir os próprios privilégios de suas oligarquias, que eventualmente tinham enfrentamentos entre si. Em meio a esses conflitos, com o governo consolidado enquanto um meio de exercer poder, diversas ditaduras ocorreram na América Latina desde que seus Estados se formaram a partir do século XIX. Exceção feita à Colômbia, que, até onde me lembro, nunca teve uma ditadura. Durante boa parte do século XX esse país viveu uma guerra civil entre os políticos liberais e conservadores, ambos da elite, sem haver um Estado efetivo para equilibrar esse conflito, e sim a busca de poder para consolidar um Estado forte. Após décadas, esses partidos entraram em acordo, mas esse conflito foi "transferido", pois grupos radicais sob a influência do marxismo deram continuidade a essa guerra civil de certa forma, formando as FARCs. Logo, não se tratou de uma "cópia" do que ocorreu em Cuba, como a palestrante fala, e sim de uma dinâmica interna de conflitos que, de diferentes modos, afetava diversos países. É claro que o contexto da Guerra Fria é muito importante para se entender toda disputa política na segunda metade do século XX. Nesse contexto, não havia neutralidade possível. Fidel Castro, por exemplo, liderou uma guerrilha para derrubar a ditadura de Fulgêncio Batista (aliado dos EUA), e teve apoio dos comunistas cubanos, mas, a princípio, colocava seu movimento como nacionalista e anti-imperialista. Diferente do que a palestrante diz, Fidel não era um guerrilheiro marxista, sendo que apenas após a tentativa de invasão em Cuba na Baía dos Porcos (financiada pelos EUA) que ele aderiu ao socialismo, se aliou à URSS e recebeu investimentos soviéticos. No Chile, Allende tentou estabelecer um socialismo democrático, não se alinhando à URSS, mas foi derrubado por um Golpe Militar apoiado pelos EUA. No Brasil, João Goulart era tido por comunista, mas era na prática um reformista trabalhista, foi derrubado por um Golpe Civil-Militar apoiado pelos EUA. Pergunto-me onde estavam as tantas guerrilhas marxistas que colocavam em perigo todos esses países, que não conseguiram fazer nada de efetivo para instaurar governos socialistas, nem derrubar as ditaduras que se estabeleceram. Na prática, em alguns desses países as guerrilhas surgiram mais como uma reação à perseguição promovida pelas ditaduras anti-esquerdistas. De toda forma, sem dúvida Cuba era a "vitrine" da URSS na América Latina, recebendo investimentos e promovendo um avanço considerável de direitos sociais, mas não necessariamente de direitos civis ou políticos. O fim da URSS, nesse sentido, prejudicou bastante o governo cubano. Claro que a palestrante não cita um detalhe importante que impedia qualquer tentativa aos cubanos de conseguir outros recursos: o embargo comercial imposto pelos EUA. Não se pode explicar todas os problemas de Cuba por meio do embargo, como alguns tentam fazer, mas já que a palestrante se propõe a debater questões relacionadas ao livre comércio internacional, os cubanos até hoje possuem restrições, ainda que mais brandas do que no passado.
Daí, ela traz o "grande fantasma" dos discursos anti-esquerda: o Foro de São Paulo... Mas o que é essa organização? É uma tentativa de organizar os diversos movimentos e partidos de esquerda em torno de uma agenda em comum. Ok, isso pode ser visto como preocupante a um anti-esquerdista. Contudo, a própria tentativa de organizar uma agenda comum entre os movimentos e partidos de esquerda latino americanos já indica que tais grupos possuem muitas divergências entre si, e tais tentativas nunca obtiveram sucesso. Enquanto a direita acredita que a esquerda tem se organizado para tomar o poder e "instaurar o socialismo", a esquerda briga entre si pelos mais diversos motivos, sem alcançar qualquer unidade, antes, vivendo de cisões atrás de cisões, com poucas concordâncias entre si.
Então a palestrante fala de como a eleição de Chávez em 98 ajudou a manter o regime socialista em Cuba, que passou a ser financiado pelo o venezuelano. Bom, é fato que Chávez fez vários acordos com Cuba, envolvendo comércio e serviços, mas o argumento é tendencioso. Tipo, sempre que os EUA ou a Europa comercializam com países que são ditaduras, isso implica em um apoio do capitalismo a governos ditatoriais? Sem entrar em muitos detalhes ela traz outro pânico: as "narcoguerrilhas marxistas da Colômbia" que quase promoveram o primeiro "Estado narcossocialista" (!?), com o dinheiro das drogas financiando os movimentos socialistas pelo mundo. Bom, vamos com calma. Antes de prosseguir, é preciso ter clareza o uso que ela faz do termo "socialismo", que, no discurso dela, está presente em praticamente toda a América Latina. Apesar de não deixar claro, ela tenta colocar como socialista qualquer governo que exerça um controle econômico, impedindo ou restringindo a liberdade comercial. Logo, se trata de entender pelo viés de maior presença do Estado (esquerda, socialismo) ou menor presença do Estado (direita, liberalismo). Já vimos como esse uso conceitual é problemático. A tentativa dela é dizer que nunca houve um governo de direita na América Latina, daí jogar todos os problemas políticos na conta da esquerda. Ora, os governos de esquerda eleitos na América Latina (Lula, Morales, Kischner, etc) mantiveram seus países no mercado internacional, prevalecendo em diversas áreas a hegemonia do capitalismo e de grandes empresas privadas. Logo, não se trata de socialismo o que esses governos realizaram. O ponto aplicado por eles mais à esquerda está na promoção de políticas públicas de mudanças, auxiliando com direitos sociais principalmente as classes historicamente excluídas pelo sistema, com uma tímida tentativa de fortalecer a sociedade civil nesses países por meio do aumento do poder de compra e consumo (algo que não visava romper com o predomínio do poder privado capitalista). Logo, esse "socialismo do século XXI" a que ela tanto se refere está mais para um capitalismo com algumas preocupações sociais aos mais pobres. Mas voltemos à Colômbia. Como já dito, as guerrilhas socialistas são, de certa forma, uma continuação da antiga Guerra Civil entre liberais e conservadores naquele país, e, para conseguir se manter, muitas das regiões dominadas pelas FARCs tinham relações com o narcotráfico, isso é inegável. Contudo, chama a atenção a caricaturização feita no vídeo. Ora, havia também narcotraficantes contrários às guerrilhas marxistas, além de outras guerrilhas que visavam o combate aos marxistas. Por que os guerrilheiros marxistas são chamados de "narcossocialistas", mas os demais traficantes e guerrilheiros não são chamados de "narcocapitalistas"? Estes últimos defendem o livre mercado e um sistema de produção de fazer inveja em muitas indústrias. Será que o PCC em São Paulo pode ser chamado de facção narcocapitalista? Afinal, querem o monopólio comercial e a ausência do Estado, certo? Logo, a palestrante joga com o medo e informações tendenciosas. Vale pensar também em um ponto: se os EUA são os maiores consumidores do narcotráfico colombiano, podemos dizer que o liberalismo estadunidense apoia o tráfico? Ou só vale a caricatura para atacar o lado adversário?
Sei que esse texto já está enorme, mas estamos quase no fim da análise do vídeo. Nessa parte final, a palestrante fala sobre a ascensão dos governos "neoliberais" (ela usa aspas), e recusa que tais governantes sejam de "direita" (ela usa aspas de novo). Militantes liberais entendem que o conceito de "neoliberalismo" seja um termo equivocado da esquerda, sem validade. Algo semelhante à esquerda, que entende não existir o "marxismo cultural" inventado pela direita. Para além disso, chama a atenção a tentativa em dizer que esses governos não eram de direita pelo fato de não serem liberais, visto que não estimularam um livre mercado e sim um "capitalismo de laços", que privilegiou oligopólios com a privatizações. Na visão dela, só um liberal "clássico" pode ser de direita, e o capitalismo só poderia ser associado ao liberalismo. Por tudo o que já foi exposto, podemos considerar que esses pressupostos dela são problemáticos, insuficientes para analisar os fatos, além de ignorar as especificidades históricas latino americanas. No Brasil do século XIX, por exemplo, o Partido Conservador era defensor do Estado, com um governo centralizado, enquanto o Partido Liberal defendia a redução do Estado, com um governo descentralizado. Bom, os conservadores estavam longe de propor qualquer prática à esquerda. No mais, dadas as definições que propomos, os governos neoliberais/privatistas/com "capitalismo de laços" (expressão dela) ou como queiram chamar, podem ser definidos como de direita mesmo não sendo liberais, e sim por realizarem políticas que visavam mais permanecer a ordem social vigente do que mudá-la. Ainda assim, é possível concordar com ela na afirmação que as privatizações não ocorreram de forma liberal, visto que não estimularam a concorrência e sim o monopólio, e que "jamais existiu um livre mercado na América Latina". Essa última frase é incontestável. Faltou a ela, contudo, uma contextualização histórica, ainda que simplificada, como a que aqui fizemos, para entender o porquê da ausência de um livre mercado na história latino americana. Poderíamos, é claro, questionar: onde e quando existiu um livre mercado, um liberalismo econômico efetivo? José Guilherme Merquior (autor liberal brasileiro, já falecido) afirma que o século XIX representou a "idade de ouro" do movimento liberal (livro: "O liberalismo antigo e moderno", Editora É Realizações, p. 41). Bom, nesse período se consolidaram os Estados liberais, com burguesias nacionais, via de regra, à frente desses movimentos e promovendo o desenvolvimento industrial na Europa. Só que ao mesmo tempo em que o liberalismo se consolidava e a tecnologia revolucionava as relações sociais e econômicas, com um suposto "livre mercado" se consolidando na Europa, também aumentava em níveis nunca vistos a miséria entre os europeus, as imigrações europeias para a América (para fugir das calamidades dos países de origem) e, para evitar as crises econômicas, as potências europeias "liberais" impunham seus domínios sobre vários continentes, na chamada política imperialista, estabelecendo monopólios pelo mundo. Logo, quando falamos em "livre mercado", a questão é: em benefício de quem? Ao contrário do ideal liberal "clássico", na prática nunca existiu um livre mercado em que a concorrência e os interesses individuais tenham promovido o bem para o coletivo, e sim para poucos. Nesse aspecto, certos ideais liberais para a sociedade são quase tão utópicos quanto algumas propostas dos socialistas, também consideradas utópicas pelos seus críticos. Ainda assim, é possível concordar com a palestrante quando ela diz que a culpa de muitos dos problemas sociais da América Latina não é do "livre mercado" (que nunca existiu por aqui), mas isso não exime o capitalismo nem os governos de direita que cá tivemos, mesmo que não sejam de uma linha liberal. Ora, assim como não é lícito culpar o liberalismo por todo problema de um governo de direita, não se deve colocar toda a esquerda em um mesmo pacote, jogando ela toda fora em virtude de alguns problemas maiores ou menores de outros governos de esquerda.
Por fim, ela diz que toda essa situação deixou os latinos "sem saber o que fazer", pois a "direita" (aspas dela) e a esquerda não resolveram os problemas, e a pobreza não foi erradicada e sim multiplicada. Essa conjuntura, ela arremata com frases de efeito, é "a oportunidade para as pessoas que defendem a liberdade e a libertação", visto que a Europa teria demonstrado que "a liberdade [econômica e individual] funciona" como alternativa aos modelos políticos estatistas (que, na visão dela, só podem ser de esquerda, dada a já citada compreensão problemática dela sobre esse conceito). Suas últimas três mensagens à América Latina servem apenas para reafirmar princípios liberais (mais comércio, menos assistencialismo; igualdade jurídica é o que garante o desenvolvimento social, não a igualdade material). Por tudo que foi até aqui exposto, a formação histórica da América Latina, a especificidade de sua sociedade e seu Estado, evidenciam que esses princípios estão longe de terem possibilidade de uma simples aplicação nestas terras, para além de se pensar a validade deles ou não. Outro ponto que ela afirma é que "a Escandinávia não é socialista". Curioso é que, dentro dos padrões estabelecidos por ela, de que a maior presença do Estado marcaria um governo socialista, os escandinavos seriam socialistas, mas, contraditoriamente, e sem tempo para explicar, ela apenas nega dogmaticamente o suposto socialismo aclamado pela esquerda à Escandinávia. Bom, tecnicamente os escandinavos possuem governo social-democratas, em sua maioria, tendo grande importância em alguns desses países os partidos socialistas democráticos, defensores do chamado de Estado de Bem Estar Social, modelo de muitos países europeus na segunda metade do século XX, que estabeleciam um controle maior sobre o mercado e altos impostos que eram revertidos em serviços públicos de qualidade.
Uau... Acabou a análise. Terá valido a pena todo esse exercício de debate conceitual? Fiz tudo isso a pedido de uns amigos, e espero que lhes sirva de algo, ou mesmo a você, heróico/a leitor/a... rs. Bom, se a tentativa de debater de forma qualificada tudo isso for inútil, nos restará o excelente questionamento de Caetano Veloso (música Podres Poderes):
"Será que apenas os hermetismos pascoais,
Os tom's, os miltons, seus sons e seus dons geniais
Nos salvam, nos salvarão dessas trevas
E nada mais?"
Bom, tirem suas conclusões...
Flávio Macedo Pinheiro
https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=1789000124514192&id=100002126661509
Tem um vídeo viralizando entre o pessoal de direita (ou anti-esquerda, enfim) de uma mulher (não sei o nome dela) falando acerca da situação política da América Latina, alegando que o "socialismo do século XXI" tem crescido em nossas terras e como a Europa pode ajudar o "liberalismo" a se consolidar por aqui. Ela fala com uma linguagem fácil, e, sem estabelecer algum critério conceitual qualificado, sem definir melhor os termos, seria difícil discordar dela. Bom, até seria, mas quem se propor a analisar o contexto histórico e social da América Latina poderá reconhecer os problemas da fala dessa mulher.
Antes de prosseguir esse texto, é preciso definir alguns termos/conceitos, visto que o que mais se vê é o uso de termos iguais com significados distintos. Uma pena que, efetivamente, poucos dos que acreditaram nesse vídeo irão se propor a fazer um debate qualificado de termos, ou a ler um "textão" como esse que escrevo. Gostaria de conseguir resumir todas as seguintes palavras em um meme, ou em frases feitas e fáceis, mas uma reflexão séria impede essa alternativa. Dito isto, tenho consciência que esse texto que escrevo agora foge aos padrões das redes sociais, pois é muito extenso. Sei, portanto, que é um texto que "nasce morto" em diversos aspectos, pois poucos terão paciência de ler, ainda mais aqueles que seriam o público alvo, a saber, os que têm compartilhado o referido vídeo. Ainda assim, por mais quixotesca que seja essa empreitada, creio ser preciso segui-la, mesmo que seja "apenas" para ajudar alguns poucos a terem mais elementos em eventuais debates. Vamos lá, então, às definições:
_ Liberalismo: ideologia desenvolvida principalmente entre os séculos XVIII e XIX, que possui um viés político e econômico. Seu aspecto político afirma a importância dos direitos individuais, como a "vida, liberdade e propriedade". De certa forma, o liberalismo político é o sistema vigente que temos no ocidente, com sistemas representativos na chamada Democracia Liberal. O aspecto econômico do liberalismo é o mais debatido, tendo passado por várias escolas teóricas. Em sua origem, essa teoria afirma que o desenvolvimento econômico de uma sociedade depende de um livre mercado, uma prática de trocas livres em que cada um, ao buscar seus próprios interesses, tende a promover (por meio de uma "mão invisível") o bem coletivo. Nessa teoria, a live concorrência é essencial, pois estimula o desenvolvimento contínuo do trabalho e da produção. A economia liberal passou por diversas críticas no decorrer do século XX, e, de certa forma, tem sido o modelo hegemônico ou almejado por diversos países.
_ Socialismo: o termo socialismo chegou a ter usos bem distintos, mas sempre girando em torno de uma supremacia dos interesses coletivos sobre os interesses individuais. Muitos movimentos nacionalistas na segunda metade do século XIX (de consolidação de Estados Nacionais, visto que ainda não existiam alguns "países" da atualidade) utilizaram esse conceito, associando a ideia de "socialismo" à de formação de uma "sociedade nacional". De toda forma, o conceito e a ideologia do socialismo surgiu e se desenvolveu na primeira metade do século XIX, sendo que os primeiros teóricos socialistas eram críticos do sistema econômico liberal, pois entendiam que essa nova organização econômica produzia por um lado a concentração de riquezas nas mãos de poucos, e por outro lado aumentava a situação de miséria à maioria da população. Assim, os socialistas defendiam que era preciso organizar o movimento operário para conseguir mudanças e melhoria de condições de vida e trabalho a essa classe recém formada. Karl Marx, sem dúvida o maior teórico do socialismo, afirmava que o liberalismo era uma ideologia proposta pela burguesia e beneficiava apenas a essa classe. Logo, esse sistema não garantia a defesa da vida, liberdade e propriedade para todos, e sim para a burguesia, que precisava excluir a classe operária desses "direitos" para garantir seus privilégios. Marx propunha uma Revolução para encerrar a ordem social e econômica da burguesia e instaurar uma nova ordem, voltada aos trabalhadores e dirigida por eles. O Estado e toda organização jurídica deveriam ser abolidos, visto que só garantiam os interesses burgueses. A nova ordem estabelecida pelos trabalhadores deveria socializar os meios de produção, daí não haveria mais classes sociais nem exploração do trabalho. Os socialistas sempre se dividiram em diversos segmentos, divergindo seja na forma de compreensão dos problemas sociais e econômicos quanto na escolha de melhor estratégia para se combater a ordem burguesa. Dentre as várias divisões entre os socialistas, vale a pena destacar a que ocorreu no início do século XX, entre os reformistas (defensores de transformações sociais por meio de eleições e reformas por meio do Estado, reduzindo desigualdades sociais e a injustiça por meio de políticas públicas) e os revolucionários (defensores da luta armada para tomar o poder e instaurar a ditadura do proletariado, para assim alcançar a sociedade sem classes). Os reformistas, em geral, ficaram conhecidos como social-democratas.
_ Capitalismo: o conceito de capitalismo tem muitos usos, e seu desenvolvimento está diretamente relacionado ao Liberalismo Econômico, mas não restrito ao mesmo. A princípio, o capitalista era associado diretamente à burguesia (ao menos a um segmento dessa classe), sendo a pessoa que vivia de atividades financeiras, seja pelo comércio ou investindo em novos sistemas de produção e buscando sempre o lucro. O sociólogo Max Weber, por exemplo, relaciona o capitalismo a práticas que busquem o lucro, mesmo que seja de um comerciante da Antiguidade. Marx, por sua vez, afirma que só existe o "modo de produção capitalista" a partir do estabelecimento das fábricas após a Revolução Industrial. Esse modo de produção gira em torno do capital, um valor que se valorizava constantemente por meio da exploração do trabalho alheio, sendo que o capitalista é a pessoa que tem os recursos para explorar os trabalhadores, e quanto mais explorar mais lucro vai ter. Segundo essa crítica, a exploração capitalista "mostra a verdadeira cara" do sistema liberal, e não depende de um livre mercado, visto que, na prática, esse mercado é sempre dominado por pequenos grupos, e o "pequeno burguês", salvo exceções, tende a ser "devorado" pela burguesia já consolidada, que estabelece monopólios e evita concorrências. Para o marxismo, o capitalismo NÃO está relacionado necessariamente ao consumo de produtos, a ter dinheiro, às práticas comerciais ou mesmo a obter lucros pessoais por meio do próprio trabalho, e sim ao sistema de produção que aliena e explora o trabalhador em favor de outra classe. Um defensor do Liberalismo Econômico irá dizer que essas práticas são deturpações desse sistema, visto que o monopólio e a exploração têm que ser combatidos e são nocivos ao desenvolvimento da sociedade, que precisa da livre concorrência e de um livre mercado. Logo, pelo viés socialista, o capitalismo implica na predominância do poder privado sobre a sociedade, refletindo os interesses dos donos dos meios de produção, e tais interesses geram inevitavelmente monopólios e exploração que beneficiam a poucos; enquanto no viés liberal, se associado ao capitalismo, os interesses privados podem contribuir para o bem da sociedade, só que os monopólios e a exploração seriam desvios do sistema, sendo necessárias ações pontuais do governo para evitar tais deturpações.
_ Direita e Esquerda: esses conceitos surgiram na Revolução Francesa, quando a burguesia encerrou o sistema social feudal (política absolutista e economia mercantilista). O Congresso Nacional na França passou a ser governado pelos burgueses, que, mesmo sendo liberais, se dividiam em virtude de suas diferentes propostas. Aqueles que ficaram na direita da Assembleia eram os mais conservadores, homens da alta burguesia, razoavelmente satisfeitos com a nova ordem estabelecida, daí propunham mais permanências do que mudanças. Aqueles que ficaram na esquerda da Assembleia eram os mais reformistas/revolucionários, homens da baixa burguesia, ainda insatisfeitos com a nova ordem estabelecida, daí propunham mais mudanças do que permanências. No centro ficavam os burgueses indecisos. No decorrer do século XIX os socialistas se apropriaram do conceito de "esquerda", afirmando que quem defendia reais mudanças eram aqueles ligados aos movimentos operários, "empurrando" os burgueses liberais e conservadores para a direita. É possível notar que esses conceitos, em sua origem, são fluídos e possuem vários níveis. Não são blocos monolíticos, e variam mais em função dos seus propósitos do que em função dos seus métodos. Por exemplo: um militante de esquerda pode defender que o Estado deve ser um agente de transformação (os chamados social democratas ou reformistas) ou afirmar que é preciso abolir o Estado para conseguir as transformações (anarquistas); e um militante de direita pode defender a redução da atuação do Estado para permanecer na atual ordem social (liberais), ou a presença maior do Estado para conservar a ordem vigente (os chamados reacionários ou fascistas). Esse exemplo que escolhi não é casual, visto que tem sido comum entre grupos da atualidade, que se denominam de direita, afirmar que a diferença entre esses dois conceitos consiste na defesa da maior atuação do Estado (esquerda) ou em sua redução (direita). O problema desse uso conceitual é que ele deturpa algumas práticas, colocando o fascismo (movimento conservador/reacionário, declaradamente de direita) na esquerda, e o anarquismo (movimento radical de mudanças, declaradamente de esquerda) na direita.
Você, heróico/a leitor/a, que chegou até aqui, tem todo o direito de questionar: "E por que eu tenho que concordar com as suas definições conceituais e não com a de outras pessoas?" Bom, é uma pergunta honesta. Para respondê-la, em primeiro lugar, eu diria que em todos os casos que apresentei, busquei estabelecer a origem histórica desses conceitos, o que nos permite ter uma segurança mais factual. Em segundo lugar, mesmo que seja inegável a arbitrariedade de qualquer conceito, é preciso reconhecer que é preciso um mínimo de precisão para a utilização de tal instrumento, que é sempre limitado, já que busca estabelecer uma compreensão estática de uma realidade que é dinâmica. Para além disso, na maioria dos debates o real problema não é se um conceito está certo ou errado, e sim que os diferentes grupos usam os mesmos conceitos com significados distintos. Em tal circunstância, esses grupos divergentes não estão falando da mesma coisa embora usem os mesmos termos, daí é preciso entender o uso que estão fazendo de determinadas expressões. Dito tudo isso, finalmente podemos retomar o vídeo que muitos têm compartilhado.
A palestrante inicia a fala afirmando que a América Latina sempre foi regida por ditadores, e isso seria um aspecto facilitador para a aceitação da ditadura de Fidel Castro em Cuba. Só esse comentário genérico já traz uma infinidade de problemas históricos. Ela ignora, por exemplo, todo o desenvolvimento latino americano que, diferente da Europa, não contou com a presença de uma sociedade estabelecida em paralelo ao Estado. Entre os europeus, a sociedade civil que se consolidou no século XIX teve diversos conflitos com o Estado, participando aos poucos ao lado ou contra as forma de governo, que não se restringiu apenas aos interesses de elites com o passar do tempo. O Estado Contemporâneo europeu, constitucional e liberal, passou por várias críticas e obstáculos, promovendo direitos políticos (voto, governo representativo etc), civis (liberdade de expressão e manifestação) e sociais (políticas públicas aos desfavorecidos) que foram democratizados aos poucos, não de imediato. Como dito, Estado e sociedade se desenvolveram na Europa de forma paralela, e nos EUA houve um aspecto semelhante. Na América Latina, contudo, o processo foi muito distinto. Aqui, não havia uma sociedade estabelecida, com classes sociais em disputa pelo poder, e sim um Estado que foi imposto verticalmente sem nada em paralelo. Enquanto na Europa houve uma burguesia empreendedora, à revelia, contra ou a favor do Estado, na América Latina isso nunca existiu, pois o Estado sempre monopolizou todos os meios econômicos, sem haver uma sociedade a lhe fazer frente. Na prática, as elites latino-americanas foram os grupos ligados à aristocracia desse Estado formado no decorrer do século XIX, com raros desenvolvimentos alheios ao governo. Houve, é claro, movimentos sociais violentos dos marginalizados, que no geral não colocaram em risco a ordem social estabelecida, que só enfrentava problemas quando havia um conflito interno entre as elites ligadas ao Estado. Desde então se consolidou na América Latina (em especial no Brasil, mas isso pode, com riscos, ser generalizado) um Estado Patrimonialista, constitucional, que sempre teve seus "donos do poder", com leis supostamente para todos, mas com garantia de privilégios a poucos, sem expandir direitos políticos, civis e sociais à sua população. Diferente dos europeus que herdaram uma divisão de "público x privado", na América Latina essa divisão nunca foi clara, e o poder privado/pessoal das elites sempre esteve à frente dos governos, se apropriando das questões que seriam "públicas" e determinando as práticas políticas dos Estados para garantir os próprios privilégios de suas oligarquias, que eventualmente tinham enfrentamentos entre si. Em meio a esses conflitos, com o governo consolidado enquanto um meio de exercer poder, diversas ditaduras ocorreram na América Latina desde que seus Estados se formaram a partir do século XIX. Exceção feita à Colômbia, que, até onde me lembro, nunca teve uma ditadura. Durante boa parte do século XX esse país viveu uma guerra civil entre os políticos liberais e conservadores, ambos da elite, sem haver um Estado efetivo para equilibrar esse conflito, e sim a busca de poder para consolidar um Estado forte. Após décadas, esses partidos entraram em acordo, mas esse conflito foi "transferido", pois grupos radicais sob a influência do marxismo deram continuidade a essa guerra civil de certa forma, formando as FARCs. Logo, não se tratou de uma "cópia" do que ocorreu em Cuba, como a palestrante fala, e sim de uma dinâmica interna de conflitos que, de diferentes modos, afetava diversos países. É claro que o contexto da Guerra Fria é muito importante para se entender toda disputa política na segunda metade do século XX. Nesse contexto, não havia neutralidade possível. Fidel Castro, por exemplo, liderou uma guerrilha para derrubar a ditadura de Fulgêncio Batista (aliado dos EUA), e teve apoio dos comunistas cubanos, mas, a princípio, colocava seu movimento como nacionalista e anti-imperialista. Diferente do que a palestrante diz, Fidel não era um guerrilheiro marxista, sendo que apenas após a tentativa de invasão em Cuba na Baía dos Porcos (financiada pelos EUA) que ele aderiu ao socialismo, se aliou à URSS e recebeu investimentos soviéticos. No Chile, Allende tentou estabelecer um socialismo democrático, não se alinhando à URSS, mas foi derrubado por um Golpe Militar apoiado pelos EUA. No Brasil, João Goulart era tido por comunista, mas era na prática um reformista trabalhista, foi derrubado por um Golpe Civil-Militar apoiado pelos EUA. Pergunto-me onde estavam as tantas guerrilhas marxistas que colocavam em perigo todos esses países, que não conseguiram fazer nada de efetivo para instaurar governos socialistas, nem derrubar as ditaduras que se estabeleceram. Na prática, em alguns desses países as guerrilhas surgiram mais como uma reação à perseguição promovida pelas ditaduras anti-esquerdistas. De toda forma, sem dúvida Cuba era a "vitrine" da URSS na América Latina, recebendo investimentos e promovendo um avanço considerável de direitos sociais, mas não necessariamente de direitos civis ou políticos. O fim da URSS, nesse sentido, prejudicou bastante o governo cubano. Claro que a palestrante não cita um detalhe importante que impedia qualquer tentativa aos cubanos de conseguir outros recursos: o embargo comercial imposto pelos EUA. Não se pode explicar todas os problemas de Cuba por meio do embargo, como alguns tentam fazer, mas já que a palestrante se propõe a debater questões relacionadas ao livre comércio internacional, os cubanos até hoje possuem restrições, ainda que mais brandas do que no passado.
Daí, ela traz o "grande fantasma" dos discursos anti-esquerda: o Foro de São Paulo... Mas o que é essa organização? É uma tentativa de organizar os diversos movimentos e partidos de esquerda em torno de uma agenda em comum. Ok, isso pode ser visto como preocupante a um anti-esquerdista. Contudo, a própria tentativa de organizar uma agenda comum entre os movimentos e partidos de esquerda latino americanos já indica que tais grupos possuem muitas divergências entre si, e tais tentativas nunca obtiveram sucesso. Enquanto a direita acredita que a esquerda tem se organizado para tomar o poder e "instaurar o socialismo", a esquerda briga entre si pelos mais diversos motivos, sem alcançar qualquer unidade, antes, vivendo de cisões atrás de cisões, com poucas concordâncias entre si.
Então a palestrante fala de como a eleição de Chávez em 98 ajudou a manter o regime socialista em Cuba, que passou a ser financiado pelo o venezuelano. Bom, é fato que Chávez fez vários acordos com Cuba, envolvendo comércio e serviços, mas o argumento é tendencioso. Tipo, sempre que os EUA ou a Europa comercializam com países que são ditaduras, isso implica em um apoio do capitalismo a governos ditatoriais? Sem entrar em muitos detalhes ela traz outro pânico: as "narcoguerrilhas marxistas da Colômbia" que quase promoveram o primeiro "Estado narcossocialista" (!?), com o dinheiro das drogas financiando os movimentos socialistas pelo mundo. Bom, vamos com calma. Antes de prosseguir, é preciso ter clareza o uso que ela faz do termo "socialismo", que, no discurso dela, está presente em praticamente toda a América Latina. Apesar de não deixar claro, ela tenta colocar como socialista qualquer governo que exerça um controle econômico, impedindo ou restringindo a liberdade comercial. Logo, se trata de entender pelo viés de maior presença do Estado (esquerda, socialismo) ou menor presença do Estado (direita, liberalismo). Já vimos como esse uso conceitual é problemático. A tentativa dela é dizer que nunca houve um governo de direita na América Latina, daí jogar todos os problemas políticos na conta da esquerda. Ora, os governos de esquerda eleitos na América Latina (Lula, Morales, Kischner, etc) mantiveram seus países no mercado internacional, prevalecendo em diversas áreas a hegemonia do capitalismo e de grandes empresas privadas. Logo, não se trata de socialismo o que esses governos realizaram. O ponto aplicado por eles mais à esquerda está na promoção de políticas públicas de mudanças, auxiliando com direitos sociais principalmente as classes historicamente excluídas pelo sistema, com uma tímida tentativa de fortalecer a sociedade civil nesses países por meio do aumento do poder de compra e consumo (algo que não visava romper com o predomínio do poder privado capitalista). Logo, esse "socialismo do século XXI" a que ela tanto se refere está mais para um capitalismo com algumas preocupações sociais aos mais pobres. Mas voltemos à Colômbia. Como já dito, as guerrilhas socialistas são, de certa forma, uma continuação da antiga Guerra Civil entre liberais e conservadores naquele país, e, para conseguir se manter, muitas das regiões dominadas pelas FARCs tinham relações com o narcotráfico, isso é inegável. Contudo, chama a atenção a caricaturização feita no vídeo. Ora, havia também narcotraficantes contrários às guerrilhas marxistas, além de outras guerrilhas que visavam o combate aos marxistas. Por que os guerrilheiros marxistas são chamados de "narcossocialistas", mas os demais traficantes e guerrilheiros não são chamados de "narcocapitalistas"? Estes últimos defendem o livre mercado e um sistema de produção de fazer inveja em muitas indústrias. Será que o PCC em São Paulo pode ser chamado de facção narcocapitalista? Afinal, querem o monopólio comercial e a ausência do Estado, certo? Logo, a palestrante joga com o medo e informações tendenciosas. Vale pensar também em um ponto: se os EUA são os maiores consumidores do narcotráfico colombiano, podemos dizer que o liberalismo estadunidense apoia o tráfico? Ou só vale a caricatura para atacar o lado adversário?
Sei que esse texto já está enorme, mas estamos quase no fim da análise do vídeo. Nessa parte final, a palestrante fala sobre a ascensão dos governos "neoliberais" (ela usa aspas), e recusa que tais governantes sejam de "direita" (ela usa aspas de novo). Militantes liberais entendem que o conceito de "neoliberalismo" seja um termo equivocado da esquerda, sem validade. Algo semelhante à esquerda, que entende não existir o "marxismo cultural" inventado pela direita. Para além disso, chama a atenção a tentativa em dizer que esses governos não eram de direita pelo fato de não serem liberais, visto que não estimularam um livre mercado e sim um "capitalismo de laços", que privilegiou oligopólios com a privatizações. Na visão dela, só um liberal "clássico" pode ser de direita, e o capitalismo só poderia ser associado ao liberalismo. Por tudo o que já foi exposto, podemos considerar que esses pressupostos dela são problemáticos, insuficientes para analisar os fatos, além de ignorar as especificidades históricas latino americanas. No Brasil do século XIX, por exemplo, o Partido Conservador era defensor do Estado, com um governo centralizado, enquanto o Partido Liberal defendia a redução do Estado, com um governo descentralizado. Bom, os conservadores estavam longe de propor qualquer prática à esquerda. No mais, dadas as definições que propomos, os governos neoliberais/privatistas/com "capitalismo de laços" (expressão dela) ou como queiram chamar, podem ser definidos como de direita mesmo não sendo liberais, e sim por realizarem políticas que visavam mais permanecer a ordem social vigente do que mudá-la. Ainda assim, é possível concordar com ela na afirmação que as privatizações não ocorreram de forma liberal, visto que não estimularam a concorrência e sim o monopólio, e que "jamais existiu um livre mercado na América Latina". Essa última frase é incontestável. Faltou a ela, contudo, uma contextualização histórica, ainda que simplificada, como a que aqui fizemos, para entender o porquê da ausência de um livre mercado na história latino americana. Poderíamos, é claro, questionar: onde e quando existiu um livre mercado, um liberalismo econômico efetivo? José Guilherme Merquior (autor liberal brasileiro, já falecido) afirma que o século XIX representou a "idade de ouro" do movimento liberal (livro: "O liberalismo antigo e moderno", Editora É Realizações, p. 41). Bom, nesse período se consolidaram os Estados liberais, com burguesias nacionais, via de regra, à frente desses movimentos e promovendo o desenvolvimento industrial na Europa. Só que ao mesmo tempo em que o liberalismo se consolidava e a tecnologia revolucionava as relações sociais e econômicas, com um suposto "livre mercado" se consolidando na Europa, também aumentava em níveis nunca vistos a miséria entre os europeus, as imigrações europeias para a América (para fugir das calamidades dos países de origem) e, para evitar as crises econômicas, as potências europeias "liberais" impunham seus domínios sobre vários continentes, na chamada política imperialista, estabelecendo monopólios pelo mundo. Logo, quando falamos em "livre mercado", a questão é: em benefício de quem? Ao contrário do ideal liberal "clássico", na prática nunca existiu um livre mercado em que a concorrência e os interesses individuais tenham promovido o bem para o coletivo, e sim para poucos. Nesse aspecto, certos ideais liberais para a sociedade são quase tão utópicos quanto algumas propostas dos socialistas, também consideradas utópicas pelos seus críticos. Ainda assim, é possível concordar com a palestrante quando ela diz que a culpa de muitos dos problemas sociais da América Latina não é do "livre mercado" (que nunca existiu por aqui), mas isso não exime o capitalismo nem os governos de direita que cá tivemos, mesmo que não sejam de uma linha liberal. Ora, assim como não é lícito culpar o liberalismo por todo problema de um governo de direita, não se deve colocar toda a esquerda em um mesmo pacote, jogando ela toda fora em virtude de alguns problemas maiores ou menores de outros governos de esquerda.
Por fim, ela diz que toda essa situação deixou os latinos "sem saber o que fazer", pois a "direita" (aspas dela) e a esquerda não resolveram os problemas, e a pobreza não foi erradicada e sim multiplicada. Essa conjuntura, ela arremata com frases de efeito, é "a oportunidade para as pessoas que defendem a liberdade e a libertação", visto que a Europa teria demonstrado que "a liberdade [econômica e individual] funciona" como alternativa aos modelos políticos estatistas (que, na visão dela, só podem ser de esquerda, dada a já citada compreensão problemática dela sobre esse conceito). Suas últimas três mensagens à América Latina servem apenas para reafirmar princípios liberais (mais comércio, menos assistencialismo; igualdade jurídica é o que garante o desenvolvimento social, não a igualdade material). Por tudo que foi até aqui exposto, a formação histórica da América Latina, a especificidade de sua sociedade e seu Estado, evidenciam que esses princípios estão longe de terem possibilidade de uma simples aplicação nestas terras, para além de se pensar a validade deles ou não. Outro ponto que ela afirma é que "a Escandinávia não é socialista". Curioso é que, dentro dos padrões estabelecidos por ela, de que a maior presença do Estado marcaria um governo socialista, os escandinavos seriam socialistas, mas, contraditoriamente, e sem tempo para explicar, ela apenas nega dogmaticamente o suposto socialismo aclamado pela esquerda à Escandinávia. Bom, tecnicamente os escandinavos possuem governo social-democratas, em sua maioria, tendo grande importância em alguns desses países os partidos socialistas democráticos, defensores do chamado de Estado de Bem Estar Social, modelo de muitos países europeus na segunda metade do século XX, que estabeleciam um controle maior sobre o mercado e altos impostos que eram revertidos em serviços públicos de qualidade.
Uau... Acabou a análise. Terá valido a pena todo esse exercício de debate conceitual? Fiz tudo isso a pedido de uns amigos, e espero que lhes sirva de algo, ou mesmo a você, heróico/a leitor/a... rs. Bom, se a tentativa de debater de forma qualificada tudo isso for inútil, nos restará o excelente questionamento de Caetano Veloso (música Podres Poderes):
"Será que apenas os hermetismos pascoais,
Os tom's, os miltons, seus sons e seus dons geniais
Nos salvam, nos salvarão dessas trevas
E nada mais?"
Bom, tirem suas conclusões...
Flávio Macedo Pinheiro
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