Por Ed René Kivitz*
De vez em quando, alguém me pergunta por que não tenho um programa de rádio e televisão. Geralmente apresento minhas respostas evasivas, comentando a respeito de custos, prioridades ministeriais e pessoais, ou coisas do tipo “ainda não chegou a hora” (que nem sei se chegará um dia) – o que, no fim, me deixa com a sensação de que meus inquiridores nunca saem muito convencidos. A verdade é que há muito tempo guardo no coração o formato de um programa que chamo “a face de DEUS na cultura brasileira”
A inserção evangélica no debate cultural da sociedade brasileira é um desafio extraordinário. Isto implica a busca sem tréguas de uma tematização relevante; uma linguagem compreensível para os leigos em Teologia Cristã, sem histórico religioso evangélico; uma abordagem eclética, não preconceituosa, inclusiva, não sectária; uma abertura para chamar “irmãos” as pessoas que a maioria dos irmãos não receberia na mesa da eucaristia; a disposição de aprender e ser enriquecido com a experiência daqueles que chamamos incrédulos-perdidos-pagãos, e um esforço de leitura e pesquisa além das fronteiras das editoras cristãs e dos livros norte-americanos-eclesiásticos-religiosos.
Duas bases teológicas da tradição reformada deveriam ser oferecidas como fundamento para este diálogo com a cultura e seus artesãos: a graça comum, que inclui sob a bondade, o governo e a instrumentalidade de DEUS aqueles que ainda não o conhecem ou com ele se relacionam em termos eventuais e genéricos, à parte do conhecimento e do compromisso com o todo da revelação bíblica; e a imago Dei, que faz de todo ser humano, indistintamente, portador de sinais do Espírito-espírito e capaz de expressar o ético e o estético divinos, além de conviver com a nostalgia do paraíso perdido. Essa nostalgia é a primeira pregação do Evangelho que todo mortal ouve em sua consciência – por sua vez também expressão sagrada do DEUS que a todos busca em amor, esse DEUS que a todos permite que andem por seus próprios caminhos sem, contudo, deixar de lhes fazer o bem, dar a chuva e as colheitas, encher seus corações de fartura e alegria (Atos 14:16,17).
Escolhi três gênios da música popular brasileira para ilustrar minha idéia de um programa de rádio ou televisão que gostaria de fazer: Milton Nascimento, Chico Buarque e Lulu Santos. Convido você a saborear algumas colheradas de sabedoria e súplicas do coração humano que ade de saudade de DEUS.
Caçador de mim
Milton Nascimento
Por tanto amor
Por tanta emoção
A vida me fez assim
Doce ou atroz
Manso ou feroz
Eu caçador de mim
Preso a canções
Entregue a paixões
Que nunca tiveram fim
Vou me encontrar
Longe do meu lugar
Eu, caçador de mim
Nada a temer senão o correr da luta
Nada a fazer senão esquecer o medo
Abrir o peito a força, numa procura
Fugir às armadilhas da mata escura
Longe se vai
Sonhando demais
Mas onde se chega assim
Vou descobrir
O que me faz sentir
Eu, caçador de mim
Caso pudesse conversar com Milton, perguntaria coisas do tipo: “Onde foi que você se perdeu para que precise procurar por si mesmo?”; ou “O que você entende por mata escura, e que armadilha existem nessa busca do ser humano por si mesmo?”
Imagino que poderíamos enveredar numa conversa a respeito do arquétipo judaico-cristão de Adão e Eva, que se perderam, se esconderam e foram expulsos do jardim: “Seria o afastamento de DEUS a razão pela qual todo ser humano busca se encontrar? Será que o encontro da pessoa consigo não deveria ser precedido pelo encontro com o divino? Não seria verdade que a salvação de que tanto se fala é uma dupla reconciliação, da pessoa com DEUS e consigo, e que uma não existe sem a outra? Será que mata escura é o oposto de jardim? Você acredita mesmo que não existem gente boa e gente ruim, e que todo mundo é, ao mesmo tempo, manso ou feroz, doce ou atroz? O encontro com o divino reconcilia essas contrariedades interiores que fazem de nós caça e caçador? Aliás, não seria o divino em nós o grande caçador? Ou o divino é a caça?
Minha História
Chico Buarque
Ele vinha sem muita conversa, sem muito explicar
Eu só sei que falava e cheirava e gostava de mar
Sei que tinha tatuagem no braço e dourado no dente
E minha mãe se entregou a esse homem perdidamente, laiá, laiá, laiá, laiá
Ele assim como veio partiu não se sabe prá onde
E deixou minha mãe com o olhar cada dia mais longe
Esperando, parada, pregada na pedra do porto
Com seu único velho vestido, cada dia mais curto, laiá, laiá, laiá, laiá
Quando enfim eu nasci, minha mãe embrulhou-me num manto
Me vestiu como se eu fosse assim uma espécie de santo
Mas por não se lembrar de acalantos, a pobre mulher
Me ninava cantando cantigas de cabaré, laiá, laiá, laiá, laiá
Minha mãe não tardou alertar toda a vizinhança
A mostrar que ali estava bem mais que uma simples criança
E não sei bem se por ironia ou se por amor
Resolveu me chamar com o nome do Nosso Senhor, laiá, laiá, laiá, laiá
Minha história e esse nome que ainda carrego comigo
Quando vou bar em bar, viro a mesa, berro, bebo e brigo
Os ladrões e as amantes, meus colegas de copo e de cruz
Me conhecem só pelo meu nome de menino Jesus, laiá, laiá
Os ladrões e as amantes, meus colegas de copo e de cruz
Me conhecem só pelo meu nome de menino Jesus, laiá, laiá, laiá, laiá
A conversa com Chico seria um pouco mais pesada. Estaria ele sugerindo que o cabaré é a estrebaria contemporânea? Caso Deus estivesse encarnando hoje e tomando sobre si todas as mazelas da raça humana, será que escolheria identificar-se com ladrões e amantes de corpos e copos? Será que essa vida de amores errantes, ilusões e esperas, fugas através de bebedeiras, mesmice e futilidade de calçada de bar é uma versão de cruz, e que aqueles cuja vida tem apenas esses horizontes não são protagonistas de mau-caratismo, mas vítimas de niilismo existencial? Haveria a sugestão de que estamos condenados a esperar pelo redentor na beira do cais, enquanto vamos ficando cada vez mais degenerados, degeneração esta simbolizada no corpo que vai envelhecendo, perdendo a silhueta atraente e deixando o vestido torto? Ou seria verdade que esta degeneração ocorre quando colocamos a esperança no redentor errado?
A Cura
Lulu Santos
Existirá
Em todo porto tremulará
A velha bandeira da vida
Acenderá
Todo farol iluminará
Uma ponta de esperança
E se virá
Será quando menos se esperar
Da onde ninguém imagina
Demolirá
Toda certeza vã
Não sobrará
Pedra sobre pedra
Enquanto isso
Não nos custa insistir
Na questão do desejo
Não deixar se extinguir
Desafiando de vez a noção
Na qual se crê
Que o inferno é aqui
Existirá
E toda raça então experimentará
Para todo mal
A cura
Existirá
Em todo porto se estiará
A velha bandeira da vida
Acenderá
Todo farol iluminará
Uma ponta de esperança
E se virá
Será quando menos se esperar
Da onde ninguém imagina
Demolirá
Toda certeza vã
Não sobrará
Pedra sobre pedra
Enquanto isso
Não nos custa insistir
Na questão do desejo
Não deixar se extinguir
Desafiando de vez a noção
Na qual se crê
Que o inferno é aqui
Existirá
E toda raça então experimentará
Para todo mal
A cura
Com o Lulu Santos eu começaria logo perguntando que mal é esse que faz a raça esperar a cura? Gostaria de saber de onde vem a cura, quem é portador da bandeira da vida, quem vai hasteá-la? Aliás, por que a “velha bandeira”? será que se trata de uma bandeira conhecida que sumiu dos portos e apagou a luz de esperança? Quando foi que ela deixou de tremular? Quem a tirou do seu lugar? Imagino uma boa conversa a respeito do desejo no qual se deve insistir, e certamente acordaríamos a respeito do fato de que o inferno não é aqui. Não sei aonde chegaríamos na discussão quanto ao lugar ou à dimensão do inferno, isto é, onde e como é este “ali”? Não tenho a menor dúvida de que teríamos um papo maravilhoso.
Agora me bate o desespero ao lembrar que o Mário Prata decidiu responder às questões de um exame vestibular que tratava da interpretação de seus textos para ver como se sairia. Teria sido reprovado. Fico pensar se os gênios citados não se ririam de minhas lucubrações em torno de suas palavras. Minha única saída seria argumentar que todo texto é polissêmico, e que escrever implica repartir convicções, incluindo o leitor nas conclusões, especialmente quando a palavra é poesia, coisa do coração.
Uma coisa é certa: já me dou satisfeito por tentar. Tentar abrir a conversa, enxergar por cima dos muros que me separam da minha cultura, meus poetas, minhas canções. Tentar me aproximar as pessoas como humano cujo coração também clama por sentido e significado, em vez de me apresentar como clérigo, dogmático, detentor da verdade e guardião das relações com Deus. Talvez, um dia desses, você me encontre na tela da TV batendo papo com Gabriel Pensador. Certamente estaríamos a debater a pergunta que ele fez em uma de suas canções: “Se Deus é justo, quem fez o julgamento?”
*Ed René Kivitz é pastor da Igreja Batista de Água Branca (São Paulo), escritor e conferencista. Este texto foi retirado do livro "Uma outra espiritualidade" - Ed. Mundo Cristão.