Ricardo Gondim
No absoluto silêncio da madrugada, acordo. Tateio pelo quarto ainda escuro, procuro óculos, livro, caneta. Com tudo nas mãos, continuo a rodopiar no estreito corredor dos desejos. Sei que vagueio em busca do que não sei. O que anseio, nunca alcanço. Meu desejo renasce todas as manhãs. Desassossegado, profano o dia antes que o sol o faça.
Penso em aquietar a alma, abafar a pressa. Imagino as paredes translúcidas. Volto ao aquário pueril que protegia as minhas fantasias. Hoje esbarro contra o meu próprio reflexo em paredes de vidro. Tudo se tumultua. Estou agitado antes da hora. Sou peixe inconformado com as bordas estreitas de um mundo contido.
O dia mal deu as caras e já quero tirar o elmo, encostar a espada, desabotoar o colarinho, chutar os cuturnos.
Saio. Na calçada, caminho claudicante. Sou um anônimo. Não reconheço a persona que me substitui nas plataformas públicas. A multidão me rodeia. Ninguém escuta quando pergunto: “Quem sou eu?” Patético, falo ao vento: “Vou rasgar a litania do ‘não farás…’; desaprender todas as lições que já ensinei”.
Descubro que não me tornei o que um dia achei que era. Reinvento-me nas ilusões. Acabo perdido sem saber escolher a fantasia que devo vestir entre a montanha de trapos espalhados pelo chão. Fechado em mim, hermético, não faço sentido. Desperdiço palavras. Os signos de minhas intuições não passam de devaneios fúteis. Recorro às platitudes. O óbvio me ajuda a fugir de mim mesmo.
Tento remendar o coração com os retalhos esgarçados de um passado sem gosto. Dos ideais, sobraram fiapos; dos sonhos juvenis, estilhaços; da luta incansável, imobilidade. Tenho medo de me sentar de costas para a rua. Isolado, rejeito a mão que pode afagar. Suspeito: o elogio é prelúdio da cuspida.
Retorno ao silêncio da noite ainda jovem. Acordei e agora deito com a mesma fadiga. Resmungo algo sobre não voltar a me recostar naquele travesseiro. Dormir é morrer. O quarto se reveste de vazio. A vida volta à indiferença de sempre. O abismo do nada se abre debaixo da minha cama. Antes de cerrar os olhos, sou tomado pela vertigem do nada. Uma saudade trágica chega; pesadelo premonitório. A litania “do nunca mais” se repete como coro de um réquiem.
No limite do sono, procuro segurar o tempo. Sussurro mais um solilóquio enquanto empurro a cara contra o colchão: “Não, não temo a decrepitude”. Fantasmas do passado me espreitam do porão da memória. Distante dos amores que perdi, afundo no abismo escuro da melancolia . Adormeço com a sensação de que faltarei quando a mesa estiver rodeada de cadeiras vazias.
Soli Deo Gloria
fonte: Ricardo Gondim
Nenhum comentário:
Postar um comentário