segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Gaslight indireto

 


"Ceis tão preparados pra me odiar?
Lá vai...
Então, existe um efeito, que é parte de uma cultura machista heteronormativa, que eu chamo de gaslight indireto. Ceis podem chamar do que vocês quiserem.
Você já teve a sensação ao ler um texto [tipo o do machistão que transou com a moça estuprada] de que a culpa do fim dos seus relacionamentos é sempre sua? Que você é quebrada irremediavelmente? Que você, que foi vítima de violência, não teve sensibilidade com aquele cara super legal que te amava e só queria fazer amor com a mulher da vida dele [enquanto você estava acionada, traumatizada e sexo não era uma coisa tranquila para ti e isso não tinha nada a ver com amor]? Que depois de ver um filme romântico, com um antiherói cheio de traumas, ou um episódio de Greys Anatomy com o Karev sem camisa, ou o Owen que estrangula no sono, você já não ligou pra aquele seu ex [violento, que gritava com você, mas que "tadinho" tinha problemas sérios e não conseguia se relacionar direito, se comunicar, por isso te tratava assim, não era falta de amor]? Quantas vezes depois de ler um texto daqueles do Papo de Homem, ou do Alex Castro, você não ficou com a sensação de que aqueles caras que te interrompem e não te deixam falar sobre o que você sabe, na verdade são na verdade, pessoas que querem um diálogo honesto sobre assuntos caros a você [mesmo que ele só repita o que as suas amigas feministas falam com mais propriedade no bar e copie vários textos de mulheres ganhando like e fama sem fazer esforço mental algum] e que na verdade são super compreensivos e eloquentes, brilhantes até?
Então...
Isso rola no filme. No livro. No versículo da Bíblia que te lembra que o teu marido é sua cabeça e a culpa é sua se pensou sozinha. No desenho animado que diz que o menino que te bate na real gosta de você.
Esse é dum dos aspectos da cultura romântica, mono, e moralista que mais me preocupa.
Já vi mulheres insistirem em relacionamentos destrutivos milhares de vezes por crerem não só na recuperação daquele homem, mas na história prévia cultural sobre o que são relações e reações. Desculpando violências, ou ressignificando violências como se apontar uma violência fosse uma espécie de demonização.
Então, acontece de fato de pessoas serem violentas pelos mais diversos motivos, alguns controláveis, outros não. Mas essas violências não deixam de existir, ou de se tornar violências por isso. O cara violento pode ir lá e buscar tratamento. Ele pode ir lá e tratar seu machismo. Ele pode parar pra ouvir mais a parceira. Mas essa aura geral machista romântica faz de cada violência uma prova de amor e hombridade. E não um sintoma de uma masculinidade que precisa se reformular pra interagir com o outro sem violentar. E isso tá muito errado.
Então assim, tem uma sociedade e uma cultura dizendo pra você que a sua violência não é violência, e que a sua narrativa sobre ela não existe, que você tá louca, hiperemotiva e etc.
Não caia nessa. Desliga essa bosta desse filme e se pergunte, de fato, o como aquele tapa, o grito, o empurrão e a interrupção em público te fizeram sentir. Depois faz uma pipoca e veja o que tiver vontade, de preferência coisas que não te façam sentir louca...
E lembre-se o home da ficção só existe ali.
Aquela mulher que não sente, também."
Autora:

Sueli Feliziani

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Gaslight indireto

 


"Ceis tão preparados pra me odiar?
Lá vai...
Então, existe um efeito, que é parte de uma cultura machista heteronormativa, que eu chamo de gaslight indireto. Ceis podem chamar do que vocês quiserem.
Você já teve a sensação ao ler um texto [tipo o do machistão que transou com a moça estuprada] de que a culpa do fim dos seus relacionamentos é sempre sua? Que você é quebrada irremediavelmente? Que você, que foi vítima de violência, não teve sensibilidade com aquele cara super legal que te amava e só queria fazer amor com a mulher da vida dele [enquanto você estava acionada, traumatizada e sexo não era uma coisa tranquila para ti e isso não tinha nada a ver com amor]? Que depois de ver um filme romântico, com um antiherói cheio de traumas, ou um episódio de Greys Anatomy com o Karev sem camisa, ou o Owen que estrangula no sono, você já não ligou pra aquele seu ex [violento, que gritava com você, mas que "tadinho" tinha problemas sérios e não conseguia se relacionar direito, se comunicar, por isso te tratava assim, não era falta de amor]? Quantas vezes depois de ler um texto daqueles do Papo de Homem, ou do Alex Castro, você não ficou com a sensação de que aqueles caras que te interrompem e não te deixam falar sobre o que você sabe, na verdade são na verdade, pessoas que querem um diálogo honesto sobre assuntos caros a você [mesmo que ele só repita o que as suas amigas feministas falam com mais propriedade no bar e copie vários textos de mulheres ganhando like e fama sem fazer esforço mental algum] e que na verdade são super compreensivos e eloquentes, brilhantes até?
Então...
Isso rola no filme. No livro. No versículo da Bíblia que te lembra que o teu marido é sua cabeça e a culpa é sua se pensou sozinha. No desenho animado que diz que o menino que te bate na real gosta de você.
Esse é dum dos aspectos da cultura romântica, mono, e moralista que mais me preocupa.
Já vi mulheres insistirem em relacionamentos destrutivos milhares de vezes por crerem não só na recuperação daquele homem, mas na história prévia cultural sobre o que são relações e reações. Desculpando violências, ou ressignificando violências como se apontar uma violência fosse uma espécie de demonização.
Então, acontece de fato de pessoas serem violentas pelos mais diversos motivos, alguns controláveis, outros não. Mas essas violências não deixam de existir, ou de se tornar violências por isso. O cara violento pode ir lá e buscar tratamento. Ele pode ir lá e tratar seu machismo. Ele pode parar pra ouvir mais a parceira. Mas essa aura geral machista romântica faz de cada violência uma prova de amor e hombridade. E não um sintoma de uma masculinidade que precisa se reformular pra interagir com o outro sem violentar. E isso tá muito errado.
Então assim, tem uma sociedade e uma cultura dizendo pra você que a sua violência não é violência, e que a sua narrativa sobre ela não existe, que você tá louca, hiperemotiva e etc.
Não caia nessa. Desliga essa bosta desse filme e se pergunte, de fato, o como aquele tapa, o grito, o empurrão e a interrupção em público te fizeram sentir. Depois faz uma pipoca e veja o que tiver vontade, de preferência coisas que não te façam sentir louca...
E lembre-se o home da ficção só existe ali.
Aquela mulher que não sente, também."
Autora:

Sueli Feliziani