quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Suficiente

 


Às vezes tropeçamos na vida,
nas escolhas, nas relações.
Pessoas que amamos, que queremos bem
e que nos maltratam, vivem em seus mundos narcisistas
e o que não lhes diz respeito tratam com desprezo.

Nossas vidas não dizem respeito
aos interesses narcisistas.
Não há espaço, não há partilha,
não há interesse, preocupação.
Só culpa, acusação.

Outras vezes tropeçamos nas palavras
e tentamos ajudar mostrando os fatos.
Mas as pessoas não querem a verdade,
pois quando o assunto é falar mal dos inimigos
vale tudo, até a mentira, até a manipulação das notícias.

Porque a verdade não interessa às pessoas,
o que lhes interessa é a conveniência das narrativas.
Uma narrativa que esconda quem segura as cordas das marionetes
mas que exponha o inimigo da vez, é suficiente, dá ibope, compartilhamento.
Pra que checar a veracidade da notícia se a manchete ferve meu sangue acusador?
Ainda que se tenha razão em mostrar a sujeira,
vale tudo - até a mentira - na exposição?

E seguimos tropeçando,
nas relações, nas palavras, no sentido,
e não sabemos rir de nós mesmos,
não sabemos admitir nossas incoerências,
e ainda nos julgamos os certos na história,
não importa quantos malabarismos façamos
pra provar nossa posição.

E buscamos contatos pra tirar deles proveito,
e vendemos mercadorias, orações, pra mostrar que nos importamos com a necessidade alheia,
e compartilhamos um pouco daqui, um pouco dali,
sem nunca pensar criticamente se há coerência nas diferentes fontes de onde bebemos nossa vida, nosso discurso.

E prometemos mundos e fundos
e ai de quem nos cobrar,
a culpa, a ansiedade, o problema é do outro,
porque nos acostumamos a prometer o que não sabemos
se vamos conseguir cumprir,
e desprezamos o coração do outro, imprimindo-lhes falsa esperança.


E perguntamos se o outro está bem,
se está precisando de alguma coisa,
somente quando temos um pedido a fazer.
E oferecemos solidariedade em troca de uma foto,
uma postagem, um vídeo, e assim justificamos a construção de nossa imagem sobre a dor alheia, sobre as pautas do momento.

E esquecemos que somos gente, que lidamos com gente, que a vida precisa ser leve, porque senão sufoca, e nos mata aos poucos.
E se perdemos a paciência, somos intolerantes, cancelados, inade...
não, não uso mais esse termo, porque agora tem dono,
e não mais somos livres com as palavras.
Porque podemos ser confundidos com as incoerências e os abusos da vida, e seguimos...

Mas quem não sabe ler a vida, não lê livros,
e não sabe interpretar as estações,
nem os textos,
nem as postagens,
apenas compartilham
sem pensar, sem analisar, sem pesquisar.
nem medir as incoerências,
apenas condena insensatamente
e continua tolerando o intolerável:
os jogos de poder, os financiamentos estrangeiros colonizadores, os interesses das instituições, a política partidária, a mídia que alimenta a mentira, os nomes dados aos bois errados - usando notícias falaciosas e manchetes escandalosas - para atacar um poder corrupto, mas escondendo a própria corrupção, escondendo aqueles que fazem suas costas quentes.

E depois viramos os loucos, assombrados por nossa própria história, como se o pensamento crítico não fosse influenciado pelas leituras de livros e de mundo que fazemos.

Por isso, não vale a pena falar mal do 'The Send', por exemplo, se seu interesse é jogar a responsabilidade em quem você quer atingir, e não em que é devido. Não adianta querer lacrar com postagens usando hebraico, usando pautas LGBTQIA+ ou feministas, se o abuso nasce no seu coração, se ainda se acha detentor de alguma coisa.
Não adianta compartilhar informação verdadeira misturada com a falsa, e continuar disseminando a mentira, por ser conveniente.

A fama, o poder, a mentira, o jogo de interesses e a máquina das instituições são o chão da opressão que assola as pessoas. Jogar esse jogo é alimentar o monstro, independente de seu discurso decolonial.


Não, não há neutralidade, não há opção.
Estamos aqui, e resta-nos viver.
Então, me debrucei nessas linhas para dizer - a quem leu até aqui - que é preciso pensar, ainda que doa, é preciso encarar quem somos e parar de achar que conseguimos enganar.
As máscaras não duram para sempre.
Um dia fecharemos os olhos de uma vez por todas
e o que ficará é nossa lembrança e nossa história no coração de quem nos ama.
E isso é suficiente.

Angela Natel

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Suficiente

 


Às vezes tropeçamos na vida,
nas escolhas, nas relações.
Pessoas que amamos, que queremos bem
e que nos maltratam, vivem em seus mundos narcisistas
e o que não lhes diz respeito tratam com desprezo.

Nossas vidas não dizem respeito
aos interesses narcisistas.
Não há espaço, não há partilha,
não há interesse, preocupação.
Só culpa, acusação.

Outras vezes tropeçamos nas palavras
e tentamos ajudar mostrando os fatos.
Mas as pessoas não querem a verdade,
pois quando o assunto é falar mal dos inimigos
vale tudo, até a mentira, até a manipulação das notícias.

Porque a verdade não interessa às pessoas,
o que lhes interessa é a conveniência das narrativas.
Uma narrativa que esconda quem segura as cordas das marionetes
mas que exponha o inimigo da vez, é suficiente, dá ibope, compartilhamento.
Pra que checar a veracidade da notícia se a manchete ferve meu sangue acusador?
Ainda que se tenha razão em mostrar a sujeira,
vale tudo - até a mentira - na exposição?

E seguimos tropeçando,
nas relações, nas palavras, no sentido,
e não sabemos rir de nós mesmos,
não sabemos admitir nossas incoerências,
e ainda nos julgamos os certos na história,
não importa quantos malabarismos façamos
pra provar nossa posição.

E buscamos contatos pra tirar deles proveito,
e vendemos mercadorias, orações, pra mostrar que nos importamos com a necessidade alheia,
e compartilhamos um pouco daqui, um pouco dali,
sem nunca pensar criticamente se há coerência nas diferentes fontes de onde bebemos nossa vida, nosso discurso.

E prometemos mundos e fundos
e ai de quem nos cobrar,
a culpa, a ansiedade, o problema é do outro,
porque nos acostumamos a prometer o que não sabemos
se vamos conseguir cumprir,
e desprezamos o coração do outro, imprimindo-lhes falsa esperança.


E perguntamos se o outro está bem,
se está precisando de alguma coisa,
somente quando temos um pedido a fazer.
E oferecemos solidariedade em troca de uma foto,
uma postagem, um vídeo, e assim justificamos a construção de nossa imagem sobre a dor alheia, sobre as pautas do momento.

E esquecemos que somos gente, que lidamos com gente, que a vida precisa ser leve, porque senão sufoca, e nos mata aos poucos.
E se perdemos a paciência, somos intolerantes, cancelados, inade...
não, não uso mais esse termo, porque agora tem dono,
e não mais somos livres com as palavras.
Porque podemos ser confundidos com as incoerências e os abusos da vida, e seguimos...

Mas quem não sabe ler a vida, não lê livros,
e não sabe interpretar as estações,
nem os textos,
nem as postagens,
apenas compartilham
sem pensar, sem analisar, sem pesquisar.
nem medir as incoerências,
apenas condena insensatamente
e continua tolerando o intolerável:
os jogos de poder, os financiamentos estrangeiros colonizadores, os interesses das instituições, a política partidária, a mídia que alimenta a mentira, os nomes dados aos bois errados - usando notícias falaciosas e manchetes escandalosas - para atacar um poder corrupto, mas escondendo a própria corrupção, escondendo aqueles que fazem suas costas quentes.

E depois viramos os loucos, assombrados por nossa própria história, como se o pensamento crítico não fosse influenciado pelas leituras de livros e de mundo que fazemos.

Por isso, não vale a pena falar mal do 'The Send', por exemplo, se seu interesse é jogar a responsabilidade em quem você quer atingir, e não em que é devido. Não adianta querer lacrar com postagens usando hebraico, usando pautas LGBTQIA+ ou feministas, se o abuso nasce no seu coração, se ainda se acha detentor de alguma coisa.
Não adianta compartilhar informação verdadeira misturada com a falsa, e continuar disseminando a mentira, por ser conveniente.

A fama, o poder, a mentira, o jogo de interesses e a máquina das instituições são o chão da opressão que assola as pessoas. Jogar esse jogo é alimentar o monstro, independente de seu discurso decolonial.


Não, não há neutralidade, não há opção.
Estamos aqui, e resta-nos viver.
Então, me debrucei nessas linhas para dizer - a quem leu até aqui - que é preciso pensar, ainda que doa, é preciso encarar quem somos e parar de achar que conseguimos enganar.
As máscaras não duram para sempre.
Um dia fecharemos os olhos de uma vez por todas
e o que ficará é nossa lembrança e nossa história no coração de quem nos ama.
E isso é suficiente.

Angela Natel