INTRODUÇÃO
No
calor do segundo turno das eleições de 2018, a igreja evangélica brasileira se
viu politicamente polarizada. Não era uma polarização entre esquerda e direita,
mas entre entusiastas de Bolsonaro como um candidato cristão, e aqueles que, no
mínimo, tinham um pé atrás com essa opção. Infelizmente essa realidade permanece
e, talvez, tenha até piorado.
No
meio evangélico conservador reformado, Guilherme de Carvalho, um influente
teólogo público, tem uma trajetória interessante diante dessa polarização
política. Sempre lidando com as questões públicas e políticas da fé cristã,
Guilherme começou a se destacar no meio evangélico com uma posição
politicamente mais à esquerda. Em meados dos anos 2000, Guilherme ainda se
identificava como um progressista reformado. Com as mudanças contextuais, o
posicionamento e o papel de Guilherme mudaram bastante. O ponto de partida que
interessa aqui é o seu papel a partir das manifestações de 2013, surgindo como
grande crítico de princípios da esquerda no meio evangélico e se firmando como
um teólogo público evangélico conservador. Essa trajetória, então, passa por
sua entrada no governo Bolsonaro como Diretor de Promoção e Educação em
Direitos Humanos, em maio de 2019, e com seu pedido de exoneração do cargo no
mês de março de 2020.
Pessoalmente,
conheço o Guilherme de maneira superficial, pois só nos encontramos rapidamente
duas vezes. Virtualmente, já tivemos dias de relações melhores. Temos opiniões
muito distintas sobre hermenêutica bíblica, teologia e confessionalidade. Na
política, acredito que, teoricamente, temos mais em comum do que se possa
imaginar, mas, na prática, tratamos os assuntos de forma bem diferente.
Como
teólogo público, Guilherme precisou explicar publicamente sua saída do governo.
Ele o fez, dois dias após seu pedido de exoneração do cargo, num texto longo
que vai muito além de uma explicação para sua saída. Eu decidi escrever essa
resposta ao seu texto por alguns motivos que ficarão claros logo mais. O que
quero antecipar aqui é que meu interesse é contribuir para um debate público.
Faço isso a partir do posicionamento do Guilherme, porque ele é uma voz, em
grande parte, qualificada e sensata no meio evangélico do qual faço parte. Mas,
como vocês verão, isso não quer dizer que ele não apresente, também erros
graves em suas análises políticas. Eu não acho o Guilherme uma ameaça à igreja
evangélica. O que estou fazendo é oferecer uma crítica que sirva para ver
ajustes e mais qualificações no debate. Com isso quero dizer que se estou
criticado o Guilherme, o faço porque há nele, e no conteúdo que ele produz,
material que deve ser levado a sério. Existem muitas outras figuras mais
populares e mais influentes, muito danosas no meio evangélico do qual faço
parte, mas que têm posicionamentos tão esdrúxulos que eu não saberia nem por
onde começar uma crítica. Além disso, essas figuras, como Téo Hayashi, que tem
contato próximo com o presidente Jair Bolsonaro, e Luciano Subirá, apelam para
um público ao qual eu não alcanço e provavelmente nunca alcançarei.
Muitos
amigos podem testemunhar que nunca faltei com o respeito com o Guilherme,
pessoalmente ou nas redes sociais. Em diversas argumentações que tivemos
online, quase todas sobre teologia e interpretação bíblica, nunca fui irônico,
sarcástico, nunca usei termos que o desqualificassem, nunca o difamei e muito
menos o ofendi. Nas últimas interações que tivemos, porém, ele foi ofensivo,
questionou minha fé e minha integridade, utilizando de termos difamatórios para
desqualificar minha pessoa e não minha opinião. Numa dessas vezes, após
questioná-lo privadamente, ele chegou a se desculpar comigo. Estou mencionando
isso por dois motivos: (1) É uma questão bastante pertinente sobre algumas
críticas que farei neste texto; (2) nesta minha resposta, por causa do teor dos
meus questionamentos, preciso ir além das opiniões apresentadas pelo Guilherme
e tratar também de sua postura, ou seja, terei que lidar com sua pessoa e não
somente suas idéias. Vale esclarecer que mesmo quando tratar de sua pessoa,
considerarei somente o seu papel como teólogo público em suas expressões
públicas, especialmente nas mídias sociais. Não está em jogo aqui sua fé ou sua
integridade, especialmente nas dimensões mais pessoais e íntimas sobre sua
pessoa, seja em suas relações familiares, de amizades ou pastorais.
Eu
sei que ao escrever esse texto, estou correndo riscos. Por um lado, corro o
risco de ver o meu texto sendo instrumentalizado para ofender e difamar a
pessoa do Guilherme. Adianto aqui que não corroboro tal comportamento e farei o
que estiver ao meu alcance para impedir que isso aconteça. Por outro lado, corro
o risco de me tornar alvo de ofensas e difamação pelo próprio Guilherme, por
pessoas que se identificam com ele ou pelo público evangélico conservador
reformado em geral. Se eu conheço um pouco esse público, isso provavelmente
acontecerá. Mas, se assim for, o que seria muito frustrante, teremos mais um
indício de que a crítica que farei é pertinente e importantíssima neste
momento.
ALGUNS
PONTOS COM NÓS
É
importante destacar dois acertos no texto do Guilherme. Em sua análise dos
processos históricos, acredito que ele tenha acertado quando diz que o fenômeno
Bolsonaro tem origem na onda conservadora a partir de 2013, como parte da
resposta ao anti-petismo, com fundamento ideológico no Olavismo. É claro que as
manifestações de 2013 foram uma grande confusão e difícil de serem
interpretadas. Não vou nem tentar. Apesar de as manifestações terem tido
origens em movimentos estudantis de esquerda, não resta dúvida de que a coisa
ganhou outra forma quando as ruas foram tomadas pela população em geral. Apesar
da confusão, tenho certeza que sem as manifestações de 2013, talvez não
teríamos visto uma popularização do conservadorismo, em todas as suas facetas,
inclusive suas piores expressões em pessoas como Olavo de Carvalho.
O
segundo acerto no texto está na análise teológica que estabelece o governo
Bolsonaro como anti-cristão, blasfemo e herege. Se a trajetória do Guilherme
não incluísse algumas de suas posições sobre “a esquerda evangélica” e sua
participação no governo, e se seu texto tivesse somente essa parte final de
crítica teológica, eu o elogiaria sem restrições e compartilharia seu texto com
alegria. Guilherme lista 6 características do Bolsolavismo e do governo
Bolsonaro que o qualificam como anti-cristão: 1) espírito revanchista e cheio
de ressentimento, e carente de qualquer movimento dialógico e reconciliatório;
2) desprezo pelas instituições e a tentativa de governar manipulando as massas
contra outras autoridades públicas; 3) desprezo pela imprensa e pela comunidade
acadêmica e científica; 4) nacionalismo; 5) descuido pela pessoa humana e pelo
meio ambiente, especialmente o descompromisso com os vulneráveis; 6) celebração
simbólica da violência. A qualificação blasfema e herege se dá pelo fato de
Bolsonaro fundamentar seu governo e (anti-)valores na crença no Deus cristão,
expressado indubitavelmente em seu slogan de campanha: “Brasil acima de tudo,
Deus acima de todos”.
Em
outubro de 2018, eu fiz uma série de posts (veja aqui tinyurl.com/yxybqngg)
sobre o motivo de não poder nem considerar um voto em Bolsonaro – muito menos
ainda uma participação cristã em seu governo (quem iria imaginar algo assim?).
Parti de minha identidade como pai adotivo, missionário entre crianças e
adolescentes em situação de risco e vulnerabilidade social, e cristão. Afirmei,
a partir das falas de campanha de Bolsonaro, que ele gritava aos quatro cantos
para todos que queriam ouvir, que sua posição era anti-cristã e sacrílega. O
motivo é que ele tomava (e continua tomando) aquilo que é sagrado à fé cristã e
utiliza para propósitos anti-cristãos. Acredito que a excelente crítica que o
Guilherme fez ao governo Bolsonaro e sua ideologia seja o ponto forte de seu
texto, e o principal motivo para algumas pessoas o terem compartilhado nas
redes sociais. Contudo, como demonstrarei, há inconsistências em seu texto que
maculam seriamente sua crítica.
GOVERNO
ANTI-CRISTÃO OU UM MAU GOVERNO?
Para
quem acompanhou o Guilherme nas mídias sociais, esperava-se que seus primeiros
textos após sua saída do governo fossem explicar essa decisão, como ele mesmo
prometeu. A explicação veio, mas envolta em tantas outras coisas que é fácil o
leitor se confundir. Como o texto termina com uma crítica aguda, muitos podem
acreditar que a saída do Guilherme se deu por perceber que, como cristão, sua
participação no governo seria incompatível com sua fé. Isso não é verdade.
A
explicação clara foi dada: sua saída foi motivada por sua vocação pastoral e
pelas demandas dessa vocação que ele não estava dando conta. Além disso,
Guilherme é claro em dizer que ele sabia das características anti-cristãs do
Bolsolavismo antes de entrar no governo. Mais ainda, no mesmo parágrafo em que
explica sua saída, ele convoca os cristãos que ainda fazem parte do governo a
permanecerem ali. Em um post posterior, ele disse: “apoiar o presente governo e
até participar dele é legítimo”.
Eu
não faço a menor ideia de como alguém que caracterizou esse governo como
anti-cristão pode imaginar apoio e participação de cristãos no mesmo. Mas eu percebo
algumas manobras retóricas em partes específicas do texto e na construção do
texto como um todo que acusam uma ambigüidade bastante problemática.
No
parágrafo em que explica sua saída, Guilherme escolhe a expressão “mau governo”
e não um governo anti-cristão. Essas duas qualificações são bem diferentes.
Dificilmente algum cristão se oporia ao apoio e à participação de cristãos em
um mau governo. O mesmo não é verdade sobre um governo anti-cristão. Essa
amenização do problema do governo Bolsonaro justamente no parágrafo em que
explica sua saída me parece inconsistente com a crítica teológica aguda ao
final do texto. Fica a pergunta: o governo Bolsonaro é anti-cristão ou
meramente um mau governo? O texto como um todo afirma a primeira opção, já
quando o Guilherme fala de apoio e participação de cristãos nesse governo, é a
segunda opção que é dada.
O
mesmo tipo de ambigüidade acontece quando atentamos para o que Guilherme fala
do slogan de campanha de Bolsonaro em 2018. Logo no início do texto, ele diz que
somente um ateu ou laicista veria algum problema com o slogan “Brasil acima de
tudo, Deus acima de todos”. Lembrem-se de que ele afirma saber do caráter
anti-cristão do Bolsolavismo antes de ter entrado no governo. Mas quando ele
diz que o governo Bolsonaro usa o nome de Deus em vão, portanto é blasfemo, ele
o faz baseado, entre outras coisas, no uso desse slogan de campanha de
Bolsonaro. Mais ainda, uma das características anti-cristãs do governo
Bolsonaro elencadas no texto é o nacionalismo. Ora, como pode ser que um slogan
tão nacionalista seja legítimo, mas o nacionalismo de Bolsonaro aponte para uma
característica anti-cristã? Deve ser uma coisa ou outra, mas as duas, ao mesmo
tempo, não dá.
O
que eu vejo nessa ambigüidade é uma tentativa de justificar sua participação no
governo, ao mesmo tempo em que quer se desvincular dos aspectos mais nocivos
desse mesmo governo. E aqui entra a consideração do texto como um todo no
contexto de sua saída. Para quem está esperando um texto que explica suas
razões para pedir a exoneração do cargo, é muito fácil considerar todas as
articulações do texto, especialmente sua crítica teológica final, como parte da
explicação, o que é um engano. Caso o Guilherme quisesse deixar claro aos seus
eleitores o motivo de sua saída do governo, deveria tê-lo feito de forma
simples e direta: “saí por minha vocação pastoral e as demandas dessa vocação
as quais não estava dando conta”. Depois de deixar isso claro, de forma
separada, aí sim, ele poderia tecer suas análises dos processos históricos e
sua crítica teológica ao Bolsolavismo e ao governo Bolsonaro. É difícil julgar
o motivo que levou o Guilherme a escolher essa forma de explicar sua saída do
governo. Eu posso estar errado, mas a impressão é a de que houve intenção de
construir um texto dessa maneira a fim de que suas opções, tanto de entrada
quanto de saída do governo, fiquem protegidas de qualquer associação com os
aspectos mais nocivos do Bolsolavismo e do governo Bolsonaro. Essa tentativa, a
meu ver, é em vão.
A
NARRATIVA VITORIOSA
Parte
importante no texto é a construção de uma narrativa bem definida. Isso vale
tanto para aquilo que é mais óbvio, ou seja, a parte do texto sobre os
processos históricos a partir de 2013, quanto para outras menos óbvias que
demonstrarei logo mais. Na época das eleições de 2018, Guilherme fez um post,
que ele compartilhou novamente poucos dias depois de sua saída do governo. Ali
ele afirma o seguinte: “O que está em jogo não é o futuro político imediato,
mas a narrativa. Quem tem a melhor narrativa”. Eu vejo muita verdade nisso. Por
esse motivo, e por saber que ele atenta muito para construções narrativas, é
que precisamos analisar de perto a forma como ele mesmo constrói sua narrativa.
ERRO
NA ANÁLISE DOS PROCESSOS HISTÓRICOS
Apesar
do acerto em ver a origem da onda conservadora no Brasil a partir das
manifestações de 2013, Guilherme comete um erro grave em outra parte de sua
análise. Ele afirma, corretamente, que o fenômeno Bolsonaro surfou nessa onda
conservadora a partir de 2013, o que culminou com sua eleição em 2018. Ele
segue para afirmar que o abandono popular ao PT e adesão ao Bolsonarismo se
explica pelo seguinte: “uma recusa [que] constituiu um gesto de repreensão à
mentalidade progressista radical, às políticas identitárias e à leniência com a
corrupção, por um lado, e de defesa da família, da moralidade judaico-Cristã, e
do combate à corrupção, por outro”.
Seu
otimismo quanto às motivações para o abandono popular ao PT e adesão ao
Bolsonarismo o trai. Eu tenho poucas dúvidas de que a corrupção é um fator
importante nesse movimento. Eu tenho dúvidas sobre as políticas identitárias.
Mas elas podem ter desempenhado um papel aqui, mais especificamente nas
questões de sexualidade e gênero. De qualquer forma, o erro que vejo é o
seguinte. Se realmente acreditarmos que a defesa da família, da moralidade
judaico-cristã e do combate à corrupção eram os valores dessa onda conservadora
a partir de 2013, é necessário um salto enorme para chegarmos em Bolsonaro.
Pelo menos a partir do momento em que Bolsonaro lança sua campanha presidencial
e começam a surgir notícias sobre sua pessoa e seu histórico político, fica
difícil, se não impossível, fazer essa relação entre sua pessoa e esses valores
elencados pelo Guilherme, a não ser que a barra de critérios seja colocada a
1cm do chão. Um sujeito misógino não pode ser símbolo da defesa da família;
alguém que elogia a tortura e enaltece a violência não pode representar a
moralidade judaico-cristã; e alguém que esteve na política por 30 anos,
passando por PP, PTB e PFL não pode se tornar o herói da anti-corrupção (se
havia poucas evidências disso antes, será que há dúvidas hoje, ou temos que
perguntar para o Queiroz?).
Para
mim, essa discrepância entre os valores vistos na emergência da onda
conservadora a partir de 2013 e a adesão ao Bolsonarismo, me dá sinais de que é
necessário uma explicação alternativa. Eu tenho certeza que muita gente votou
em Bolsonaro apesar de. Mas também tenho absoluta certeza de que muita gente
votou nele por causa de. Houve uma identificação de (anti-)valores entre um bom
número de conservadores que surgiram a partir de 2013 e aquilo que Bolsonaro
apresentava. O anti-ambientalismo, o obscurantismo e anti-cientificismo, uma
aversão aos vulneráveis e miseráveis, o nacionalismo violento, culminando com
uma atitude anti-direitos humanos, tudo isso fez parte da adesão ao
Bolsonarismo, e fazia parte da ideologia conservadora popular (não
necessariamente na ala intelectual). Essa explicação faz muito mais sentido e
não exige um salto argumentativo.
Caso
um grupo tenha visto em Bolsonaro, por algum motivo, uma possibilidade para
validar e promover os valores conservadores mencionados pelo Guilherme, que foi
o caso dele de acordo com seu texto, então foi um cálculo terrivelmente mal
feito. Mais ainda, esse erro de cálculo mostra que muito provavelmente
Guilherme não sabia o que era o Bolsolavismo. Não perceber, ou ignorar, os
(anti-)valores de Bolsonaro e de boa parte dessa onda conservador a partir de
2013, porque ficaram vislumbrados com a possibilidade de defender certos valore
legítimos, é um erro grave, já que os (anti-)valores eram berrados, enquanto os
valores eram sussurados. Como eu disse, todas as 6 características anti-cristãs
do Bolsolavismo listadas pelo Guilherme já eram evidentes antes desse governo.
Esse erro da análise dos processos históricos por parte do Guilherme deve ser
explicado, em minha opinião, por sua tentativa de construir uma narrativa
positiva do conservadorismo popular brasileiro em contraste com uma identidade
extremamente negativa da esquerda em geral. Isso vai aparecer em outros
lugares, como vou mostrar agora.
SIMETRIA
ENTRE PT E BOLSONARO
Por
todo o texto, Guilherme cria uma imagem dos governos do PT, do Lulopetismo e da
esquerda de forma geral com traços de homogeneidade e extremidade. Falarei mais
disso abaixo. Mas é importante perceber que essa caracterização, especialmente
no uso de termos como esquerda identitária e fascista, busca criar uma simetria
entre PT/Lulopetismo e Bolsonaro/Bolsolavismo. Essa fala resume bem a questão:
“Mas e quanto ao movimento Bolsolavista? Muito já se apontou a existência de
traços fascistas nesse movimento. O populismo e o desprezo pelas instituições,
aliado ao discurso maniqueísta do ‘ nós versus eles’ e ao assassinato de
reputações, já foram apontados como marcas inambíguas. Mas isso não ajuda tanto
assim; os quatro sinais são reconhecidamente presentes no Lulopetismo, ainda
que devidamente cozidos no dendê”.
Dependendo
das qualificações e demonstrações, eu diria que o populismo, o desprezo pelas
instituições, o discurso maniqueísta e o assassinato de reputações, podem
formar uma simetria entre essas duas posições político-ideológicas. Mas, tudo
depende. Na questão do fascismo, eu não vejo simetria alguma, independente de
qualificação e demonstração. A forma de corrupção difundida nos governos PT,
que não foram exclusividade desses, foi uma ameaça à democracia em alguns
planos, sem dúvida. Mas estamos falando de um governo que perdurou por 13 anos
e não apresentou o mesmo tipo de ameaça direta e orgulhosa em discursos
públicos à democracia como esse 1 ano de governo Bolsonaro. Eu diria que o
texto falha gravemente ao não fornecer fundamentações para esse tipo de
afirmação. Mais ainda, eu diria que é uma falha que causa um sério problema na
forma como o texto é interpretado.
É
muito fácil, a partir dessa narrativa de simetria entre as duas ideologias, o
leitor considerar que na opinião do Guilherme, o Lulopetismo e o governo do PT
é meramente o outro lado da mesma moeda do Bolsolavismo. A partir disso, o
leitor é levado a acreditar que, na opinião do Guilherme, o governo PT e o
Lulopetismo apresentaram as mesmas características anti-cristãs elencadas como
características do governo Bolsonaro e o Bolsolavismo. Essa pode ser ou não a
opinião do Guilherme. De qualquer forma, é uma comparação infundada. Não há
simetria aqui, de forma alguma. Não dá para considerarmos ponto por ponto a
questão, mas tenho pouca dúvida de que é possível analisar as 6 características
anti-cristãs que o Guilherme lista sobre o governo Bolsonaro, e dizer que em
geral o Lulopetismo e o governo do PT não as apresentou de forma alguma, ou
pelo menos as apresentou de forma muito mais amena. Do ponto de vista
teológico, eu quero apontar duas coisas. Eu diria que o governo PT e o
Lulopetismo, com seu compromisso objetivo e direto pelos vulneráveis da
sociedade (ainda que os tenha prejudicado, e muito, direta e indiretamente,
pelos esquemas de corrupção), não pode ser comparado com o governo Bolsonaro e
o Bolsolavismo. E mesmo em seus erros graves, por exemplo, de uma ideologia que
tem uma história de violência e celebração de conquistas violentas, não é possível
acusar o PT e o Lulopetismo de blasfêmia ou sacrilégio da mesma forma que
podemos fazer com o governo Bolsonaro e o Bolsolavismo. A manipulação e abuso
da fé cristã naquele é algo que não se viu, não se vê, e jamais veremos neste
(essa afirmação fundamentará uma aplicação importante ao fim deste texto).
Portanto,
a simetria entre os dois, em alguns pontos, não pode ser aplicada ao todo. Mais
importante ainda, essa simetria não se aplica, de forma alguma, à crítica
teológica ao final do texto do Guilherme. Talvez ele não pense que se aplica,
mas na forma como sua narrativa é construída, não é difícil imaginar que tal
aplicação faz parte da análise política do Guilherme e pode ser considerada
facilmente pelos leitores de seu texto.
Concedo
aqui que, no que tange à acusação de fascismo, Guilherme deixa de lado a
simetria e afirma que o fascismo de direita é mais “sério”, querendo dizer aqui
mais perigoso, do que o fascismo “desbundado” da esquerda.
QUEM
É QUEM NESSA HISTÓRIA?
Trata-se
de um detalhe na narrativa, mas é um fator importante. Por todo o texto, quando
Guilherme está criticando o governo diretamente, ele fala sobre o presidente e
um núcleo fascista e anti-cristão. No entanto, quando ele fala sobre sua
participação dentro de um contexto menor do governo, ele fala sobre um grupo de
“conservadores moderados”. A impressão que se tem a partir do texto é que esse
núcleo mais radical é relativamente pequeno, especialmente porque Guilherme
concede ao conservadorismo em geral e ao governo Bolsonaro em particular, uma
grande pluralidade. Eu não questiono isso. Acredito que ele esteja correto.
Mas, apesar de estar correto nisso, essa é uma questão bastante problemática
dentro da narrativa criada pelo Guilherme, como mostrarei logo em seguida.
Certamente
a representatividade conservadora dentro do governo é plural, e podemos falar
de uma ala mais radical e uma ala mais moderada. Mas seria justo se Guilherme
definisse esses grupos melhor. Não estou falando em citar nomes, e sim em
estabelecer os critérios que separam essas alas. Comparar Guilherme com o
Bolsonaro está fora de questão, mas seria tão gritante comparar a Damares com o
Bolsonaro? Na opinião do Guilherme, imagino, seria. Mas por quê? Onde está a
linha que separa os conservadores fascistas e anti-cristãos dos conservadores
moderados? Pensando para além desses grupos internos do governo e chegando no
contexto evangélico conservador reformado, pessoas com fortes opiniões
políticas, como Franklin Ferreira, seriam considerados pelo Guilherme como
“conservadores moderados” ou mais radicais? Sem essa definição de critérios que
justifique uma separação de grupos conservadores, fica a pergunta: o que há de
tão radical no presidente e no núcleo a sua volta, e o que há de tão moderado
no grupo do Guilherme? Talvez para ele o critério seja óbvio, mas para outras
pessoas não é. Para mim, certamente, não é.
Com
essa ausência de definição, é muito fácil criar essa narrativa de um
conservadorismo plural, com alas radicais e alas moderadas, em que ele e seu
grupo estão bem confortáveis na ala moderada e dissociada da ala radical. Seria
bom, portanto, não somente a apresentação de critérios para definir esses
grupos, como também uma argumentação que explique de que forma esses grupos
estão dissociados. Aos de fora do governo, ainda que exercendo honestidade
intelectual, a dissociação não é tão fácil assim. Pessoalmente, eu consigo
separar a pessoa do Guilherme da pessoa do Bolsonaro ou da Damares, mas não
consigo separá-los tão facilmente quando considero seus ofícios e participação
dentro do governo.
GUERRA
CULTURAL, EXTREMIZAÇÃO DO LADO OPOSTO E ESQUIVA DA CRÍTICA
Em
minha opinião, esse aspecto da narrativa criada pelo Guilherme é a mais
problemática de todas, pois envolve questões que vão além das idéias e tocam na
postura demonstrada.
Quero
começar com o modo como Guilherme cria uma narrativa em que se esquiva
facilmente de possíveis críticas futuras. Ele afirma que os “cínicos” irão se
levantar para dizer que “já sabiam” no que o governo Bolsonaro se tornaria, mas
que isso é trivialidade, pois quem não sabia o que era o Bolsolavismo? E
conclui esse parágrafo com: “quem ‘sabe’ que tudo vai dar errado, sempre, faz
aí a sua aposta, é o pai de todos os cínicos, aquele que anda ao redor da
terra, buscando um justo para tentar”.
A
ironia, o deboche, a forte acusação, ainda que enrustida, de que esses são
filhos do pai dos cínicos que anda pela terra buscando um justo para tentar, é
de uma gravidade sem tamanho. Esse tipo de postura não é digna de alguém que
deseja fazer uma análise correta dos processos históricos, da sociedade e do
quadro político em que se vive. Falar sobre trivialidade a respeito da
concretização de um fracasso moral e político do governo Bolsonaro, previsto
por muitos, está soando cada vez pior a cada dia que se passa do governo. Será
que o Guilherme ainda teria coragem de falar em trivialidade diante do que
estamos vendo nas falas de Bolsonaro sobre a pandemia? Chamar esse fracasso de
trivialidade está se tornando cada vez mais nefasto. A concretização dos
(anti-)valores de Bolsonaro que apontavam para o que estamos vendo hoje, como
um “E daí?”, dito pelo presidente quando confrontado com o grande aumento das
mortes por Covind-19, não pode ser chamada de trivialidade. Não há nada de
trivial quando um presidente se coloca do lado da morte e não da vida, que é o
que faz parte de seu discurso desde sempre. Chamar isso de trivialidade é
nefasto, como eu disse.
Pior
ainda, a acusação de filhos do Diabo, de forma disfarçada, assim, sem
fundamentação, sem explicação, generalizada, não pode ser considerada como um
julgamento cristão. Essa metáfora implica que Guilherme é o justo tentado por
aqueles que, já antes do início do governo, viram que não poderia sair nada de
bom disso. Ora, eu fiz isso e conheço muitos cristãos sérios, inclusive amigos
do Guilherme, que fizeram isso. Seriam eles todos cínicos, filhos do “pai dos
cínicos”? É claro que o Guilherme não pensa assim. Mas, então, por que essa
postura, essa generalização diante de uma acusação tão grave? É assim que se
joga o jogo político? Essa é uma postura digna de um teólogo público? Com esse
tipo de acusação e postura, como o Guilherme quer participar de um debate
público sério? Debates públicos pressupõem a validade dos questionamentos e da
crítica por aqueles que pensam de forma diferente. Mas aqui o que temos é a vã
acusação de que aqueles que já sabiam que tudo daria errado são cínicos e
filhos do Diabo. Tais pessoas não merecem ser ouvidas num debate público, pois
só querem fazer o papel de tentadoras de pessoas justas, como o Guilherme. Esse
é o tipo de desqualificação dos críticos e ofensa que não pode ser aceita e
deve ser exposta de forma clara, especialmente entre cristãos. Ora, com essa
fala, o Guilherme simplesmente chamou muitos irmãos de fé de filhos do Diabo.
Isso é vergonhoso.
Essa
fala também revela que Guilherme, e eu vejo isso também no posicionamento
político de outros evangélicos conservadores reformados, se vê numa guerra
espiritual. Mais adiante eu falarei sobre guerra cultural, que provavelmente é
travada à luz dessa guerra espiritual. Na mente do Guilherme, assim como de
outras pessoas com pensamento semelhante ao dele, existe uma guerra espiritual
entre céu e inferno a ser travada. Nessa guerra, seres humanos são
caracterizados numa batalha entre filhos das trevas contra os filhos da luz,
ou, os justos contra os injustos. Não há, necessariamente, nada de errado
nisso. Há muitos exemplos bíblicos, especialmente no Novo Testamento, para essa
visão. Mas para fazer uma aplicação dessa visão é necessário muito cuidado, o
que não é demonstrado pelo Guilherme. Existe um abismo entre, por exemplo, a
guerra espiritual que quer mandar fogo do céu para consumir os samaritanos,
como propuseram André e João (Lucas 9.51-56), ou a guerra espiritual que não é
contra carne e sangue, como diz Paulo (Efésios 6.12), ou ainda a guerra
espiritual entre a igreja e o mundo, com fundamento ético claro, como propõe
Tiago (Tiago 1.27; 4.4). É necessário mais esclarecimentos, mais fundamentos, e
mais cuidado ao aplicar essa visão, do que o demonstrado pelo Guilherme. Eu não
compartilho dessa visão, portanto não vejo em minhas ações na área da teologia
pública como uma forma de vencer uma batalha espiritual. É por isso que não
considero essa minha crítica ao Guilherme uma forma de vencer algum mal dentro
da igreja, ou algo assim. Simplesmente quero oferecer algo que produza bons
frutos, mesmo dentro de um contexto de crítica ao posicionamento e a postura de
pessoas.
É
muito fácil se esquivar de críticas quando se constrói um cenário tão enviesado
e generalizado, desconsiderando as pessoas a quem isso possa se aplicar, a
partir de uma postura tão esdrúxula. O que me parece é que se trata de uma
atitude insegura quanto aos seus próprios posicionamentos e escolhas. Ao ridicularizar
quem possa vir e dizer, “eu avisei”, Guilherme se protege como alguém que não
errou, não ignorou evidências e não desconsiderou aquilo que era óbvio. Quem
não sabia o que era o Bolsolavismo? Para muita gente, como eu, a impressão é a
de que muita gente não sabia, ou pelo menos, hoje, fingem que não sabiam.
Essa
situação só piora. Existe no texto de forma geral, e na postura do Guilherme
nas redes sociais, uma tendência de ridicularização dos críticos. Ele faz isso
usando termos denegridores, como cético, infantil, histérico, “desbundado”, o
que, obviamente, não é uma articulação argumentativa séria, mas tão somente um
tipo de argumento ad hominem. Como afirmei no início do texto, eu mesmo já fui
vítima desse tipo de postura do Guilherme. Argumentos ad hominem podem ter sua
função, mas somente quando a postura de alguém é inconsistente com sua idéias,
posicionamentos e função. Algumas das minhas críticas aqui são ad hominem, mas
não são baratas, muito menos ridicularizações e ofensas.
Essa
ridicularização, em alguns pontos, tem não somente o propósito de difamar,
denegrir e desqualificar os críticos, mas também de criar uma narrativa em que
os críticos ou a oposição é sempre extremada. Na narrativa criada pelo
Guilherme, a esquerda é sempre homogênea. Eu tenho certeza de que se fosse
questionado, ele apresentaria uma avaliação muito mais qualificada e nuançada
da esquerda. Ou seja, eu sei que ele tem conhecimento suficiente para propor
algo melhor. Mas aquilo que ele apresenta no texto e em suas opiniões públicas,
é uma narrativa em que a esquerda é homogeneamente extrema. Ele estabelece essa
posição extrema da esquerda ao usar as qualificações identitária e fascista.
Essa
extremização de toda a esquerda fica evidente quando comparamos a forma como
Guilherme fala da direita e do conservadorismo. Veja como ele descreve o
surgimento da nova direita a partir de 2013: “uma cacofonia de tribos
libertárias, liberais, liberais-conservadoras, conservadoras,
ultraconservadoras e diversas bolhas protofascistas”. Ele concede à nova
direita uma pluralidade que corresponde à realidade. Ele faz o mesmo quando
lida com o governo Bolsonaro, sempre querendo dizer que a grupos de direita de
posições diferentes. Mas ele nunca concede essa pluralidade à esquerda ou aos
governos do PT. É por isso que sua narrativa é tendenciosa e manca.
Se
o problema fosse somente a extremização da esquerda, ainda não estaríamos numa
situação ruim. O problema real é que se trata da construção de uma narrativa,
portanto, ela serve de fundamento para o que eu já chamei de esquiva da
crítica. A partir dessa narrativa, Guilherme estabelece o critério pelo qual
avalia qualquer crítica feita a ele e ao grupo de “conservadores moderados”. É
como se todos os críticos fossem considerados como sendo participantes da
esquerda identitária e fascista. Com a extremização da esquerda, a narrativa do
Guilherme impossibilita tanto que haja uma “esquerda moderada” que possa
criticar a ele e ao seu grupo por outros motivos que não por questões
identitárias ou fascistas (na verdade, eu tenho diversos problemas com a visão
do Guilherme sobre questões identitárias, mas não é algo que vai ajudar na
discussão aqui). Mais ainda, com essa narrativa, Guilherme se esquiva de
qualquer crítica, porque simplesmente lança tudo na conta da esquerda
identitária e fascista. Essa é uma postura e um posicionamento muito estranhos,
já que Guilherme tem amigos que se consideram de esquerda e que não são
tratados assim por ele nos relacionamentos pessoais. Eu, que não me identifico
com a esquerda e nem com a direita, tenho diversas críticas ao posicionamento
do Guilherme e do seu grupo de “conservadores moderados” no governo, que não
são fundamentadas em identitarismo ou fascismo. (Não, não sou isentão. Acredito
em alguns valores teóricos do conservadorismo clássico e alguns valores
teóricos da esquerda. Mas isso não é suficiente, especialmente por causa do
histórico prático dessas ideologias, para me identificar com elas.)
E
aqui chego ao ponto final dessa parte de minha resposta: a guerra cultural. A
postura e posicionamento do Guilherme nas redes sociais como teólogo público,
me parece, está fundamentada na aceitação e envolvimento numa guerra cultural.
Eu tenho um excelente exemplo de como isso se dá na prática do Guilherme e de
seu grupo de “conservadores moderados”. Há pouco mais de um mês, o pessoal do
Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), se encontrava
no centro de um debate sobre sexualidade. Para quem acompanhou a discussão na
mídia, tratava-se de uma futura campanha lançada pelo MMFDH sobre gravidez na
adolescência. Nas entrevistas dadas pela ministra Damares Alves, o foco era a
abstinência como método contraceptivo e de prevenção da gravidez na
adolescência. Parecia, portanto, que a campanha a ser lançada pelo MMFDH se
focaria nisso, ou seja, na abstinência sexual na adolescência.
Eu,
que trabalho numa missão que atua na assistência de crianças e adolescentes em
situação de risco e vulnerabilidade social, havia feito uma pesquisa, e estava
pronto para escrever sobre gravidez na adolescência. A ocasião da minha
pesquisa e do lançamento da campanha do MMFDH era a semana nacional de
prevenção da gravidez na adolescência. Por experiência pessoal com o público e
pela pesquisa que fiz em artigos acadêmicos, é claro que a abstinência sexual
passa longe, mas muito longe mesmo, de lidar com as questões mais profundas da
experiência dos adolescentes em situação de risco e vulnerabilidade social.
Contudo, não adiantava mais apresentar críticas e argumentos edificantes para
contribuir para a discussão. Para o pessoal do MMFDH, a batalha já estava
definida: nós, com valores morais cristãos, desejosos de ajudar os adolescentes
brasileiros e contribuir para o seu bem, versus a mídia e a esquerda
identitária e fascista que só quer saber de libertinagem sexual.
O
mais interessante de tudo isso é que quando a campanha foi lançada, não havia
nada, mas nada mesmo, que indicasse a abstinência sexual como o método proposto
de prevenção da gravidez na adolescência. A campanha diz “Adolescência
primeiro, gravidez depois. #tudotemseutempo”.
Nem nos anúncios de áudio ou de vídeo que vi da campanha havia algo sobre
abstinência sexual. Fica, então a pergunta, quem causou esse burburinho todo?
Minha sugestão, não sem razão, é a de que o pessoal do MMFDH, muito
provavelmente a própria ministra Damares Alves, buscou esse combate com a mídia
e sociedade ao enfatizar uma questão que nem seria abordada na campanha
oficial, mas estava somente nos valores desse grupo que fundamentavam a
iniciativa da campanha. É claro que essa guerra cultural, de certa maneira,
existe no Brasil, mas buscá-la ativamente é contra-produtivo, totalmente
ineficiente. Parece-me que o Guilherme e o seu grupo de “conservadores
moderados” estão tão imersos nessa guerra cultural, que nem são capazes mais de
perceber que existe um mundo para além dessas disputas forçadas de posições
extremadas.
A
minha pesquisa e as conclusões que cheguei em meu texto sobre gravidez na
adolescência (se houver interesse do leitor nesse material, por favor entre em
contato comigo que posso indicar o link de acesso) não são motivadas por
ideologias de esquerda ou questões identitárias, mas pela realidade de vida de
adolescentes em situação de risco e vulnerabilidade social. Contudo, na
narrativa criada pelo Guilherme e seu grupo de “conservadores moderados”, isso
não existe. Toda crítica a eles e ao que fazem deve ser, inevitavelmente,
proveniente de uma esquerda identitária e fascista. Essa guerra cultural é
completamente inútil. No caso específico das discussões que precederam essa
campanha de prevenção da gravidez na adolescência, a inutilidade da discussão
ficou clara ao testemunharmos, um mês depois do lançamento da campanha, outra
campanha, dessa vez do Ministério da Saúde, de promoção do uso da camisinha. O
slogan é “Usar Camisinha É uma Responsa de Todos”.
Assim,
a narrativa criada pelo Guilherme de extremização da esquerda e identificação
de todos os críticos com essa esquerda extremada é forçada, desonesta e inútil.
Como o Guilherme tem como valores, a utilidade, a prudência, a maturidade e a
ciência, só posso dizer tais valores não correspondem com sua postura e
posicionamento públicos. Eu confio em alguns amigos pessoais que me dizem que o
Guilherme não tem essa postura e esse posicionamento nas relações pessoais. Eu
acredito nisso. Exatamente por isso é que faço essa crítica, a fim de que o
Guilherme e outros reconsiderem seus papeis como teólogos públicos a partir de
seus relacionamentos pessoais. Infelizmente, tenho visto a promoção de um
ambiente em que o diálogo é desgastante na melhor das hipóteses, e impossível
na pior.
E,
ENTÃO, COMO VIVEREMOS?
É
necessário avaliar esse texto do Guilherme no contexto de seu papel no meio
evangélico brasileiro a partir de 2013. Para quem o acompanha de perto, sabe
que foi pouco tempo depois das manifestações de 2013 que o Guilherme começou
uma jornada crítica ao que ele chama de “esquerda evangélica” ou “evangelicalismo
progressista”. Foi uma sequência de críticas que envolveu pessoas e
instituições, que, da minha perspectiva, culminou com a conferência do L’Abri,
organização liderada pelo Guilherme, em outubro de 2016, sob o título
“Ideolatria”.
Pensando
nessa pano de fundo e, agora, com esclarecimentos do Guilherme sobre sua
análise dos processos históricos, vemos uma estratégia bastante problemática.
Isso não quer dizer que houve uma decisão absolutamente consciente dessa
estratégia, portanto me eximo de julgar as motivações do Guilherme. A
emergência dessa onda conservadora, como já vimos e o próprio Guilherme
apontou, incluía grupos proto-fascistas e outros grupos menos radicais, mas que
apresentavam características perigosas. Nesse contexto, Guilherme foi criando
uma narrativa que, teoricamente, impossibilitava a atuação de evangélicos que
se identificavam com valores da esquerda. Em outras palavras, ele criou uma
narrativa igual a que apresenta nesse texto recente, em que não pode existir
uma presença evangélica de centro-esquerda, pois todos são extremados e jogados
no mesmo saco de uma esquerda identitária e fascista. Isso não quer dizer que
Guilherme se identificada com a ala radical e problemática dessa onda
conservadora. Seu voto em Marina Silva no primeiro turno das eleições de 2018 é
uma prova mais do que suficiente.
É
claro que a narrativa criada pelo Guilherme não impossibilitou, de fato, a
presença de evangélicos críticos dessa onda conservadora, seja por pessoas que
se identificam com a esquerda ou não. Essas pessoas continuam a existir. A
questão é outra. A narrativa criada pelo Guilherme as tornou inexistentes no
inconsciente coletivo do evangelicalismo conservador reformado brasileiro. Para
esse grupo de pessoas, como se ouve constantemente por aí, ser de esquerda e
ser cristão é incompatível. De forma ainda mais rasteira, hoje, como o próprio
Guilherme já deve estar experimentando depois de sua crítica ao governo
Bolsonaro, criou-se uma mentalidade no evangelicalismo brasileiro que se você
critica o atual governo, uma massa de gente acha que você não é cristão ou não
é leal a Deus. No meio evangélico conservador reformado, se você começa a falar
de questões sociais, logo é taxado de marxista. Se você critica alguma pessoa
de referência nesse meio, logo é taxado de herético, arrogante, burro, etc. Não
há espaço para qualificações, muito menos para diálogo.
Diante
do papel exercido pelo Guilherme nesse meio, desde 2013, e daquilo que
transmitiu em seu texto, eu acho que há espaço para uma auto-crítica. É claro
que não podemos colocar na conta do Guilherme as ofensas e estupidez de gente
ignorante e imatura na internet. Mas seria importante que ele e outras pessoas
considerassem de que forma podem ter contribuído para chegarmos nesse ambiente
tão inóspito a evangélicos “progressistas moderados”, ou a qualquer evangélico
que se coloque como crítico desse governo e de outras posições teológicas e
políticas tipicamente defendidas por conservadores reformados.
Como
um teólogo público, que quer ser uma referência na análise dos processos
históricos, não demonstra uma tentativa de perceber sua própria participação
nesses processos? Sem essa reflexão auto-crítica, fica difícil aceitar uma
mudança em seus posicionamentos públicos sobre o atual governo, ou qualquer
outra mudança de posicionamento.
Por
fim, quero apontar para uma questão que, para mim, explica a facilidade com que
o Guilherme deixa escapar tantos problemas em seu posicionamento e em sua
postura, assim como explica as distorções mais sérias de sua narrativa. A
resposta disso, para mim, está no grupo de convivência. Eu sei que o Guilherme
não vive numa bolha social-política-religiosa. No entanto, ele vive, há um bom
tempo, entre uma rede de líderes evangélicos conservadores e reformados. Esse
grupo, que não necessariamente pode ser definido com precisão já que não é “clube
formal”, mas que contém certas figuras centrais, possui um importante capital
social, definindo as agendas das maiores editoras evangélicas, diversos
seminários evangélicos e as grandes conferências. Não existe nada de errado com
isso em si. Todos os grupos com certa identidade definida fazem isso com a
intenção de propagar seus valores, pois acreditam serem valores importantes.
Mas eu vejo que criou-se um tipo de lealdade de grupo que dificulta críticas
diretas aos seus membros, e impossibilita totalmente críticas públicas aos seus
posicionamentos. Isso pode ser consciente ou inconscientemente, já que um grupo
de convívio forte também acabando formando uma estrutura de plausibilidade. No
caso do Guilherme, eu vejo que a vivência nesse grupo de líderes e certa
influência que ele tem no meio evangélico conservador reformado, faz com que
ele não perceba os sérios pontos cegos de sua narrativa. As críticas que ele
recebe são, tipicamente, de pessoas de fora desse grupo e desse meio. Eu também
vejo que muitas críticas feitas ao Guilherme, a esse grupo e a esse meio, são
feitas de forma extremada, ridicularizada e ofensiva, ou seja, acaba por
confirmar e justificar a narrativa criada pelo Guilherme. Por isso achei tão
importante escrever essa crítica que difere completamente daquilo que o
Guilherme e esse pessoal está acostumado a receber.
Desde
2017, pelo menos, eu tinha esperança, dados os posicionamentos críticos do
Guilherme ao lado esquerdo da tradição evangélica, que ele começaria, diante
das claras evidências que surgiam, também, uma jornada crítica ao lado direito.
Isso nunca aconteceu. De forma tímida, nas eleições de 2018, Guilherme, diante
da pressão de alguns líderes evangélicos para que ele apoiasse publicamente o
Bolsonaro, afirmou que havia, também, uma idolatria da direita evangélica.
Comparado a tudo o que ele disse sobre pessoas e instituições evangélicas com
inclinações à esquerda, tal reconhecimento da idolatria da direita evangélica
não é nada. Mais ainda, diante da difusão dessa idolatria e da seriedade dos
riscos, esse reconhecimento não valeu nada. Por que nunca houve, até hoje, essa
crítica bem fundamentada, citando situações e, talvez, pessoas, da ideolatria
de direita? A resposta para mim está na lealdade de grupo. Mais uma vez, não necessariamente
como escolha consciente por parte do Guilherme. É bem possível que isso
aconteça por mero costume, já que criticar o próprio grupo exige um esforço
consciente de afastamento emocional e psicológico, e pode implicar situações
bastante desgastantes, o que é tarefa muito difícil. De qualquer forma, eu,
pessoalmente, tenho dificuldades em levar a sério a opinião do Guilherme como
teólogo público, hoje, exatamente por isso. E, infelizmente, esse texto recente
dele, fortalece essa dificuldade que tenho.
Para
entender a seriedade das implicações desse grupo de convívio, quero citar um
conhecido filósofo conservador brasileiro, que é também cristão, mas católico,
e que é bem conhecido do Guilherme e de muitos evangélicos interessados em
teologia pública. Francisco Razzo, num texto recente na Gazeta do Povo, deu um
excelente exemplo de arrependimento cristão no campo da política. Razzo fala
que está completamente arrependido de ter defendido o voto em Bolsonaro em
2018. Ele diz que não tem desculpa alguma para ter feito isso, já que tinha
todas as condições intelectuais para ver que Bolsonaro era a epítome da
imaginação totalitária, tópico de um de seus livros. O que, então, faz alguém
tão consciente da política brasileira ter votado naquilo que, de acordo com
ele, há de mais abominável na política brasileira? A resposta de Razzo é muito
significativa: “Parcela considerável dos meus leitores é, em alguma medida,
ligada à direita neoconservadora brasileira. Portanto, a outra razão, ainda
menos nobre e um tanto mais estúpida, para ter declarado meu voto em Bolsonaro,
foi com isso ficar bem entre meus leitores, num temerário cálculo que, hoje
tenho certeza, resultou em soma zero. Todos perderam. Eu, porque traí minha
consciência. O público, porque teve de mim, naquele momento, menos do que
merecia”.
O
Guilherme não cometeu o mesmo erro que o Razzo, pois nunca defendeu o voto em
Bolsonaro, nem mesmo votou nele. Ao contrário disso, pouco antes das eleições
afirmou que o voto em Bolsonaro, caso alguém quisesse fazer tal escolha,
deveria ser feito “com vergonha, humildemente, e pedindo desculpas, e
unicamente pela mais absoluta falta de opção”. No entanto, o fundamento por
trás do erro do Razzo está, também, a meu ver, por trás dos erros de
posicionamento e postura do Guilherme. Razzo teve a humildade de fazer uma
auto-crítica, se arrepender, e pedir perdão por si e por seus leitores. Eu não
posso afirmar que o Guilherme precisa se arrepender e pedir perdão, já que seu
erro foi bem diferente. Contudo, eu esperava o mínimo de reflexão e
auto-crítica sobre seu papel nesse cenário, em vez de ler um texto em que
encontro os mesmos erros de antes. Guilherme continua criando essa narrativa
que cria extremos, joga todos os críticos no mesmo saco da esquerda identitária
e fascista, portanto elimina a possibilidade de críticos moderados,
especialmente à esquerda, que querem dialogar, hesita qualquer tentativa de
apontar para a ideolatria da direita evangélica, joga a jogo da guerra cultural
e se esquiva de qualquer crítica.
Termino,
então esse texto com algumas recomendações que podem ser úteis ao Guilherme e a
outras pessoas que se identificam com ele de alguma forma. Primeiro, eu confio
nos relatos de alguns amigos próximos do Guilherme de que sua postura e seus
posicionamentos nas interações pessoais diferem totalmente do que se vê nas
mídias sociais. Assim, sugiro uma profunda reflexão sobre como devemos nos
apresentar nas redes sociais. Para quem não tem dificuldade em atuar nas redes
sociais com a moderação que se faz nas relações pessoais, é melhor ficar de
fora dos debates públicos nesse meio de comunicação tão difícil.
Segundo,
a quem deseja fazer análises de processos históricos e se encontra como
personalidade pública importante em algum nicho social, é importante pensar
sobre seu próprio papel. Teólogos públicos não podem fazer análises de
processos históricos só “lá fora”, mas também “aqui dentro”, em suas esferas de
influência e sobre si mesmo dentro dessas esferas.
Terceiro,
acredito que estamos diante de uma boa oportunidade de reconsiderar o papel do
teólogo público no meio evangélico conservador reformado brasileiro. No
contexto brasileiro e em outros, a grande ameaça político-ideológica à igreja
evangélica nunca foi e nunca será a esquerda. Se há alguma influência da
esquerda na igreja evangélica brasileira, essa se dá no limitadíssimo âmbito do
pensamento intelectual e de algumas práticas missionárias. Essa ameaça, em
minha análise, está muito longe dos bancos das igrejas. O mesmo não pode ser
dito sobre a ideologia de direita. O discurso moral que valoriza a autoridade,
as hierarquias, com uma forte conotação religiosa e de dependência de uma
tradição judaico-cristã, entre outras coisas, fazem com que a igreja evangélica
se torne muito mais vulnerável à coaptação pela ideologia da direita, mesmo que
ela venha em suas versões mais esdrúxulas. Se eu aprendi algo com as eleições
de 2018 foi isso. É possível até mesmo fazer essa análise a partir dos
princípios utilizados pelo Haidt, a quem o Guilherme gosta tanto, para definir
valores importantes no espectro político. Ainda que seja possível criticar
alguns simplismos ali, se cruzarmos as características típicas do
evangelicalismo com as características de conservadores, é claro que elas
estarão mais próximas do que com as características de progressistas. Portanto,
o teólogo público evangélico brasileiro, para fazer alguma diferença, precisa
começar a difícil tarefa de criticar a ideolatria da direita dentro da igreja
evangélica brasileira. Esta, diferente da ideolatria da esquerda, infesta o
evangelicalismo brasileiro, do mais alto escalão até a cadeira de plástico das
igrejas nas periferias, e ainda tem uma cara de ortodoxia e piedade.
Fica
aqui a minha crítica e as minhas sugestões, que eu espero sejam edificantes a
quem quiser dar atenção a mim. Escrevo isso com grande desejo de que encontre
mentes e corações abertos e não me interpretem com malícia. Além disso, faço
isso porque não tenho influência alguma na igreja evangélica brasileira, nem
mesmo no pequeno contexto em que eu e o Guilherme vivemos dentro dessa igreja.
Portanto, sei que minhas críticas não causarão nenhum tipo de problema
profissional e ministerial ao Guilherme. Eu disse aqui muita coisa do que
queria dizer e achava preciso dizer sobre essas questões teológicas e políticas
no evangelicalismo conservador reformado brasileiro. Gostaria muito de não
precisar ter que tratar disso mais. Contudo, é possível que ainda tenha uma ou
duas coisas a dizer, dependendo do desenrolar do governo Bolsonaro e a forma como
algumas lideranças evangélicas conservadoras reformadas reagirão. Mas, desejo
muito que não seja necessário falar muito mais.
fonte: https://www.facebook.com/notes/caio-peres/pontos-sem-n%C3%B3-na-teologia-p%C3%BAblica-evang%C3%A9lica-conservadora-reformada/10159686358673496?av=100046088934113&eav=AfY7VdmFGeTZABDn1jr4mgRJaup2dQO1Z8L144kqSTETe8I-VmJ7VB7SU_uMwRPWf0w
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