sexta-feira, 6 de março de 2020

“nem todo homem”



um texto cínico para pedir perdão ao sexo masculino por ousarmos existir


não raro aparece alguém para dizer que a mulher deve se comportar para não acabar se insinuando para os outros e, com isso, não sofrer abusos. depois de ouvir frases como esta, confesso que revejo todos meus anos de vida e tenho muita vontade de pedir perdão.
pedir perdão ao médico que fez a primeira piada de ódio às mulheres quando me viu sair com uma vagina, da barriga de minha mãe. queria pedir perdão ao meu pai, por não ter nascido varão. pedir perdão aos meus avôs, que esperavam mais machos do que fêmeas, para discutir futebol, política e mulher nos almoços de domingo, com propriedade. aliás, queria pedir perdão a um dos meus avôs, especificamente, por passar com um pedaço da barriga aparecendo, na frente de seus amigos, aos 10 anos de idade, e incitá-los a comentar sobre meu corpo. perdão também, vô, por aquele dia de calor infernal que coloquei um short jeans e provoquei aquele outro amigo seu, velho nojento, pai de um colega de escola, a bater na minha bunda enquanto eu passava para visitar vovó. pelo menos sei que aqueles homens se divertiram.
pedir perdão pr’aquele médico famoso que dos sete aos 14 anos me apalpou a cada consulta, opinando sobre cada parte do meu corpo, tecendo comentários que variavam entre “elogios” e gordofobia. perdão a um menino mais velho, da cidade pequena, que, aos 15, me levou para um lugar escuro e disse que eu precisava perder a vergonha, colocando a mão dentro do meu short-saia, enquanto colegas da minha idade esperavam ansiosos para ouvir sobre a experiência que eu não queria ter vivido. perdão a todos os desgraçados que ao me conhecerem já avaliaram se sirvo pra transar ou pra casar. perdão, não deveria ter me insinuado para vocês.
perdão aos caras que tentaram — muitos conseguiram — transar comigo, com minhas irmãs e amigas, sem camisinha, dizendo que era a única vez, que éramos especiais, que camisinha machucava, que seria “só a cabecinha” ou que gozariam fora. perdão por termos sido burras e acreditado em vocês. perdão por termos abortado o filho de vocês.
perdão a cada homem que me olhou com nojo, ódio ou desejo me imaginando nua, magra, loira, de biquíni, de joelhos, amarrada, com outra mulher ou qualquer fetiche que o valha: eu provavelmente pedi isso. perdão aos caras que me abordaram, quando andava abraçada com uma amiga ou namorada, perguntando se não faltava um homem entre nós. perdão aos homens que perseguiram e espancaram e estupraram minhas amigas e namoradas por elas se negarem a relacionarem-se com eles. perdão aos homens que eu disse não, inclusive àqueles que acabei cedendo, de tanta pressão e insistência.
perdão por sentir medo e atravessar a rua quando vejo vocês, homens, passarem. mesmo quando vocês só iam olhar meu corpo, falar uma gracinha. perdão aos homens que vi abandonarem suas famílias, provavelmente essas mulheres escolheram criar seus filhos sozinhas. afinal, elas tinham mães e avós para ajudar. perdão por ter deixado aquele infeliz de merda me dizer como eu deveria me comportar, falar, andar, me vestir, se quisesse continuar com ele. perdão por ter insistido no término e ter te obrigado a levantar a voz e a mão para mim. sem contar as vezes que te fiz me perseguir no trabalho. perdão por ter caído no conto do professor apaixonado, pedófilo e sedutor, me dizendo que eu era diferente das meninas da minha idade. perdão por não ter percebido que eu era tão adolescente quanto elas.
perdão por generalizar homens. é que a minha experiência e a das mulheres que conheço não ajuda muito. mas, olha, estamos sempre dispostas a dar colher de chá: para vermos mais de nós assediadas. mais de nós estupradas. mais de nós mortas. não, claro que nem todo homem. nem todo homem. mas, necessariamente, toda mulher experienciou violência masculina.
cada vez que escrevo sobre algo que aconteceu comigo, ou com alguma mulher que conheço, por responsabilidade de uma pessoa do sexo masculino, é uma chuva de comentários de homens dizendo que nem todo homem é assim. toda vez. todas as vezes que denunciamos violência masculina e misógina. não somos obrigadas a responder a essas mensagens individualmente, e não vamos. sabe por quê?
não importa o que eu penso sobre homens. não importa se você conhece um homem diferente de todos os outros homens. eu não estou preocupada com isso. eu escrevo sobre coisas que aconteceram, por acreditar que é importante que pessoas saibam o que acontece com mulheres por responsabilidade dos homens. isto importa: que mulheres saibam que outras mulheres estão passando pela mesma coisa que elas, simplesmente pelo fato de serem mulheres.
se essas agressões são majoritariamente perpetradas por homens, essa conta fecha. gostaria que as pessoas se poupassem de constranger feministas e mulheres que ousam contar o que aconteceu e acontece a elas, e gastassem energia tentando não fazer a mesma coisa. se for para constranger alguém, que constranjam seus amigos homens a não fazerem a mesma coisa.
o que você pensa do relato individual das mulheres não é importante. o que eu penso sobre homens não é importante. desconfiar publicamente do relato de mulheres é, sim, desrespeitoso, e diminui o peso do testemunho. é uma tentativa de esvaziar politicamente o testemunho. preferir desconfiar de mulheres e priorizar homens é um risco absurdo, e uma hora essa bosta vai resvalar na sua bunda. se você se acha diferente, siga sendo diferente e não esqueça: uma hora o relato pode ser sobre você. tentar me explicar que nem todo homem é assim é perda de tempo.

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“nem todo homem”



um texto cínico para pedir perdão ao sexo masculino por ousarmos existir


não raro aparece alguém para dizer que a mulher deve se comportar para não acabar se insinuando para os outros e, com isso, não sofrer abusos. depois de ouvir frases como esta, confesso que revejo todos meus anos de vida e tenho muita vontade de pedir perdão.
pedir perdão ao médico que fez a primeira piada de ódio às mulheres quando me viu sair com uma vagina, da barriga de minha mãe. queria pedir perdão ao meu pai, por não ter nascido varão. pedir perdão aos meus avôs, que esperavam mais machos do que fêmeas, para discutir futebol, política e mulher nos almoços de domingo, com propriedade. aliás, queria pedir perdão a um dos meus avôs, especificamente, por passar com um pedaço da barriga aparecendo, na frente de seus amigos, aos 10 anos de idade, e incitá-los a comentar sobre meu corpo. perdão também, vô, por aquele dia de calor infernal que coloquei um short jeans e provoquei aquele outro amigo seu, velho nojento, pai de um colega de escola, a bater na minha bunda enquanto eu passava para visitar vovó. pelo menos sei que aqueles homens se divertiram.
pedir perdão pr’aquele médico famoso que dos sete aos 14 anos me apalpou a cada consulta, opinando sobre cada parte do meu corpo, tecendo comentários que variavam entre “elogios” e gordofobia. perdão a um menino mais velho, da cidade pequena, que, aos 15, me levou para um lugar escuro e disse que eu precisava perder a vergonha, colocando a mão dentro do meu short-saia, enquanto colegas da minha idade esperavam ansiosos para ouvir sobre a experiência que eu não queria ter vivido. perdão a todos os desgraçados que ao me conhecerem já avaliaram se sirvo pra transar ou pra casar. perdão, não deveria ter me insinuado para vocês.
perdão aos caras que tentaram — muitos conseguiram — transar comigo, com minhas irmãs e amigas, sem camisinha, dizendo que era a única vez, que éramos especiais, que camisinha machucava, que seria “só a cabecinha” ou que gozariam fora. perdão por termos sido burras e acreditado em vocês. perdão por termos abortado o filho de vocês.
perdão a cada homem que me olhou com nojo, ódio ou desejo me imaginando nua, magra, loira, de biquíni, de joelhos, amarrada, com outra mulher ou qualquer fetiche que o valha: eu provavelmente pedi isso. perdão aos caras que me abordaram, quando andava abraçada com uma amiga ou namorada, perguntando se não faltava um homem entre nós. perdão aos homens que perseguiram e espancaram e estupraram minhas amigas e namoradas por elas se negarem a relacionarem-se com eles. perdão aos homens que eu disse não, inclusive àqueles que acabei cedendo, de tanta pressão e insistência.
perdão por sentir medo e atravessar a rua quando vejo vocês, homens, passarem. mesmo quando vocês só iam olhar meu corpo, falar uma gracinha. perdão aos homens que vi abandonarem suas famílias, provavelmente essas mulheres escolheram criar seus filhos sozinhas. afinal, elas tinham mães e avós para ajudar. perdão por ter deixado aquele infeliz de merda me dizer como eu deveria me comportar, falar, andar, me vestir, se quisesse continuar com ele. perdão por ter insistido no término e ter te obrigado a levantar a voz e a mão para mim. sem contar as vezes que te fiz me perseguir no trabalho. perdão por ter caído no conto do professor apaixonado, pedófilo e sedutor, me dizendo que eu era diferente das meninas da minha idade. perdão por não ter percebido que eu era tão adolescente quanto elas.
perdão por generalizar homens. é que a minha experiência e a das mulheres que conheço não ajuda muito. mas, olha, estamos sempre dispostas a dar colher de chá: para vermos mais de nós assediadas. mais de nós estupradas. mais de nós mortas. não, claro que nem todo homem. nem todo homem. mas, necessariamente, toda mulher experienciou violência masculina.
cada vez que escrevo sobre algo que aconteceu comigo, ou com alguma mulher que conheço, por responsabilidade de uma pessoa do sexo masculino, é uma chuva de comentários de homens dizendo que nem todo homem é assim. toda vez. todas as vezes que denunciamos violência masculina e misógina. não somos obrigadas a responder a essas mensagens individualmente, e não vamos. sabe por quê?
não importa o que eu penso sobre homens. não importa se você conhece um homem diferente de todos os outros homens. eu não estou preocupada com isso. eu escrevo sobre coisas que aconteceram, por acreditar que é importante que pessoas saibam o que acontece com mulheres por responsabilidade dos homens. isto importa: que mulheres saibam que outras mulheres estão passando pela mesma coisa que elas, simplesmente pelo fato de serem mulheres.
se essas agressões são majoritariamente perpetradas por homens, essa conta fecha. gostaria que as pessoas se poupassem de constranger feministas e mulheres que ousam contar o que aconteceu e acontece a elas, e gastassem energia tentando não fazer a mesma coisa. se for para constranger alguém, que constranjam seus amigos homens a não fazerem a mesma coisa.
o que você pensa do relato individual das mulheres não é importante. o que eu penso sobre homens não é importante. desconfiar publicamente do relato de mulheres é, sim, desrespeitoso, e diminui o peso do testemunho. é uma tentativa de esvaziar politicamente o testemunho. preferir desconfiar de mulheres e priorizar homens é um risco absurdo, e uma hora essa bosta vai resvalar na sua bunda. se você se acha diferente, siga sendo diferente e não esqueça: uma hora o relato pode ser sobre você. tentar me explicar que nem todo homem é assim é perda de tempo.