A Salvação Chegou na Sapucaí? Parte I: A Mangueira e Teólogos
Evangélicos
Eu não queria escrever sobre um acontecimento na
elite do carnaval carioca 2020, mas aqui estou eu. A força propulsora que me
levou a decidir escrever algo sobre o samba-enredo e as imagens utilizadas pela
Mangueira foram as críticas que vi de teólogos evangélicos conservadores e
reformados. Eu não me importo se uma expressão artística carnavalesca não apresenta
o evangelho na Sapucaí. Mas eu me importo muito com os simplismos espirituais
que teólogos evangélicos apresentam para definir a identidade de Jesus e sua
obra salvadora. Minhas manifestações se darão em duas etapas. Nesta aqui, só
introduzirei algumas complicações para a visão de que o evangelho = perdão de
pecados individuais, e o que acho de alguns fundamentos teológicos por trás do
samba-enredo da Mangueira. Na segunda etapa, falarei sobre o uso identitário ou
apropriação cultural para expressar a identidade de Jesus, a partir de
expressões artísticas da pessoa de Jesus, inclusive a imagem do jovem negro e
favelado crucificado do desfile da Mangueira.
Por mais que muitos queiram reduzir o evangelho ao
perdão de pecados individuais, a coisa é bem mais complicada quando atentamos
para o Novo Testamento. Após ver algumas críticas ao desfile da Mangueira,
dizendo que o evangelho não estava ali porque não se falou sobre pecado e
perdão, pensei num exemplo que aparece no Evangelho de Lucas. Antes de chegar
lá, acabei fazendo um exercício. Busquei ocasiões nos Evangelhos em que Jesus
pronuncia salvação de forma direta a alguém. São poucos casos, mas o exercício
vale ser apresentado.
O verbo “salvar” (σῴζω) é utilizado em alguns casos
que fazem referência à cura de alguma doença, como hemorragia (Mateus 9.22;
Marcos 5.34; Lucas 8.48, paralelos), cegueira (Marcos 10.52; 18.42, paralelos)
e “lepra” (Lucas 17.19). Só aqui já poderíamos parar um pouco para pensar o
significado da salvação oferecida por Jesus nos Evangelhos. Certamente é algo
mais amplo do que perdão de pecados individuais. O contexto é diferente numa
outra ocorrência. Em Lucas 7.50, durante uma refeição na casa de Simão, um
fariseu, Jesus pronunciou o perdão de pecados a uma mulher que havia lavado
seus pés com suas lágrimas, perfumando-os com alabastro e secando-os com seus
cabelos. A cena é concluída com Jesus dizendo à mulher para ir em paz, pois sua
fé havia salvado-a. Essa conclusão é muito parecida com os outros casos em que
salvação é sinônimo de cura (ver, por exemplo, Mateus 9.22). Ainda que a
salvação esteja relacionada com o perdão de pecados de forma bem explícita
aqui, o contexto da refeição na casa de um fariseu e a fala de Jesus comparando
o modo como a mulher o tratou com o modo como Simão o tratou nos leva a pensar
que há mais do que mero perdão de pecados aqui.
Mas existe um episódio peculiar que nos ajuda
bastante e é esse o exemplo que me veio à mente desde o início. Jesus se
convida para comer na casa de Zaqueu, um publicano, portanto riquíssimo e um
traidor de seu povo, pois era um tipo de superintendente dos cobradores de
impostos para Roma. Em meio à refeição, Zaqueu diz que daria metade de sua
riqueza aos pobres e devolveria quatro vezes a quantia de quem havia extorquido
algum bem. Diante disso, Jesus declara que a “salvação” (σωτερία) “chegou”
(ἐγένετο) à “casa” (οἲκῳ) de Zaqueu, pois ele também é filho de Abraão. Nesta
história não há confissão de pecados, perdão de pecados, uma percepção do
significado da cruz como meio para lidar com o pecado individual de Zaqueu, ou
algo do tipo. Existe uma decisão de partilhar recursos materiais com os pobres,
e o conserto material de erros prévios. Na fala de Jesus, fica claro que
salvação é identificação comunitária (“casa” e não o indivíduo), identitária
(“filho de Abraão” como marca judaica), que se manifesta na decisão de Zaqueu
de partilhar seus bens com os pobres e devolver os bens materiais ilicitamente
adquiridos. O interessante é que tudo isso está vinculado, pela construção narrativa
de Lucas, com a comunhão de mesa entre Jesus e Zaqueu. Estar à mesa com Jesus
é, na percepção de Lucas e sua construção narrativa, se identificar com Jesus.
E isso, por sua vez, significa ser “filho de Abraão”, partilhar seus bens com
os pobres e restituir aquilo que foi adquirido indevidamente. E tudo isso junto
significa que a “salvação” proposta por Jesus se manifestou.
Pensando no que os guardiões da fé ou da sã
doutrina falaram sobre o desfile da Mangueira em 2020, fico imaginando o que
falariam sobre esse episódio caso aparecesse em alguma outra obra literária que
não fosse um Evangelho canônico. Talvez diriam: O evangelho não está aí! Cadê a
cruz? Cadê a confissão de pecados? Cadê o indivíduo chorando ao olhar para cruz
e ver ali o preço de seu pecado? Esse Zaqueu se acha parça de Jesus porque ele
come à sua mesa! Pior, se acha parça de Jesus porque está dando bens materiais
aos pobres, mas sem “evangelizar”! Acha o quê? Acha que salvação do messias é
partilha, como no samba-enredo daquela escola de samba? Acha que servir a Jesus
e servir aos pobres é a mesma coisa? Iludido Zaqueu! Você não passa de um
pagão, materialista, ideólogo identitário. A salvação de Jesus está longe de
você! Tão longe quanto a salvação está de quem quer se aproximar de Jesus por
meio daquele desfile da Mangueira.
Por fim, quero esclarecer algumas questões. Não,
não vou defender a Mangueira como proclamadora do evangelho, nem que o
fundamento teológico do samba-enredo é impecável (apesar de o maior problema
teológico estar no samba-enredo e não na representação artística do jovem
negro, favelado e crucificado, será mais apropriado falar disso na próxima
etapa). Mas vejam o que aconteceu. Uma escola da elite do samba carioca fez um
desfile sobre a identidade de Jesus como aquele que está do lado de gente
sofredora e oprimida (“Enxugo o suor de quem desce e sobe ladeira; me encontro
no amor que não encontra fronteira; procura por mim nas fileiras contra a
opressão”), a partir de um clamor/oração a Deus (“Senhor, tenha piedade; olhai
para a terra; veja quanta maldade Senhor, tenha piedade; olhai para a terra;
veja quanta maldade”). Por isso, decidiram não permitir que o desfile
apresentasse um teor sexual típico do carnaval! E, mais impressionante ainda, o
fundamento teológico por trás do desfile foi um tanto bíblico e apropriado para
o contexto artístico de manifestação cultural como o carnaval. Explico. Como
arte provocadora, o desfile da Mangueira desafiou visões culturais e políticas
a partir de uma inversão de status entre pobres e ricos diante de Deus (algo
comum no Antigo e Novo Testamentos), o que os levou a identificar Jesus com os
menos favorecidos (algo que Antigo e Novo Testamentos também fazem). Isso tem
fundamento bíblico profundo. Não é, necessariamente, o evangelho. Não é,
necessariamente, uma mensagem cristã. Existem outros fatores determinantes
sobre isso que não se encontram no samba-enredo, como o senhorio de Jesus e seu
empobrecimento e morte como parte de seu senhorio, e a necessidade de
identificação pessoal com Jesus e submissão ao seu senhorio. Além disso,
contexto é tudo. Portanto, escola de samba, usando dinheiro público, talvez
usando recursos ilícitos, num ambiente de imoralidades diversas, não tem muito
“lugar de fala” para dizer que sem partilha não há futuro. Mas tudo isso ainda
encontra um significado importante como manifestação artística e cultural num
contexto tão popular como é o carnaval brasileiro. Nesse sentido, foi uma
mensagem riquíssima e com grande potencial de conscientização. Minha visão positiva
aqui está, além de tudo o que disse, no fato de que como uma escola de samba, a
Mangueira não arroga o direito de defender a fé cristã ou de explicá-la.
Julgá-la por esse critério é completamente inapropriado, como falarei na
segunda etapa de minha análise. Eles utilizaram partes válidas e apropriadas da
teologia bíblica para transmitir sua mensagem. Ponto.
Já os teólogos evangélicos conservadores e
reformados que criticaram o desfile da Mangueira, o fizeram de uma posição de
quem está aqui para explicar o verdadeiro evangelho e a verdadeira identidade
de Jesus. Assim como no caso da Mangueira, a crítica deles também contém alguns
elementos da teologia bíblica, mas é simplista e limitada. Por isso que me
coloco como crítico deles, muito mais do que da Mangueira. Esse pessoal arroga
o direito de dizer o que é a fé cristã, o evangelho, a identidade de Jesus e
sua obra de salvação. Eles não percebem, porém, que sua visão cristã está
fundamentada em certas tradições cristãs e não dá conta da amplitude daquilo
que o Novo Testamento apresenta como evangelho. Como demonstrarei na próxima
etapa, é uma visão espiritualizada que não entende a lógica da encarnação que
fundamenta a identidade de Jesus e sua obra de salvação. Como no exemplo citado
acima, essa visão não dá conta nem da história de Zaqueu, nem do uso de
“salvação” nos Evangelhos. Nesse caso, a Mangueira, dentro de seu contexto,
usou a teologia bíblica muito melhor do que os teólogos conservadores e
reformados dentro do contexto deles. Na próxima etapa, vamos aprofundar a
discussão a partir das representações artísticas de Jesus e da lógica da
encarnação.
acessado em 01/03/2020 às 10:53h
A Salvação Chegou na Sapucaí? Parte II: Identidades
Sociais, Representações Artística de Jesus e a Encarnação
Será que um Jesus representado por um jovem negro e
favelado é só o outro lado da moeda de um Jesus representado por um homem
branco, de cabelos loiros longos e olhos azuis? Seriam os adeptos de teologias
contextuais hipócritas ao criticar as representações do Jesus branco enquanto
aplaudem as representações do Jesus negro, pobre e favelado? Seriam os adeptos
da teologia conservadora (que também é contextual) hipócritas ao criticar as
representações do Jesus negro, pobre e favelado, enquanto sua tradição aceitou
por séculos e ainda aceita um Jesus branco? Será que toda teologia cria e
representa um Jesus (e Deus) à sua imagem e semelhança? Dada as atuais
discussões sobre a representação de Jesus no desfile da Mangueira, quero falar
um pouco sobre apropriação cultural, teologias identitárias e o que tudo isso
tem a ver com a encarnação.
Apropriação cultural é um fenômeno tão antigo
quanto a própria humanidade. Para nós, cristãos, o uso da cruz como símbolo
religioso é um bom exemplo de apropriação cultural com inversão de valores. Um
instrumento de tortura e morte como demonstração do poder romano, se tornou
símbolo de vida e do senhorio de Jesus que derrota o poder romano e qualquer
outro poder político humano. No Antigo Testamento existem diversos exemplos
disso. Quero citar somente um. No livro do Êxodo, a libertação dos hebreus da
escravidão no Egito é descrita como sendo efetuada pela “mão forte” (3.19,
13.3, 14, 16; 32.11; cf. Dt 3.14, 6.21, 9.26) e “braço estendido” (6.6; cf. Dt
9.29) de Deus. Essas imagens eram típicas da propaganda militar egípcia sobre o
poder do faraó nas XVIII e XIX dinastias (entre os séculos XVI e XII antes de
nossa era). Assim, os autores bíblicos se apropriam culturalmente dessas
imagens para invertê-las. Em favor dos oprimidos e sofridos hebreus, a “mão
forte” e “braço estendido” de Deus são usados contra o poder opressor da “mão
forte” e “braço estendido” do faraó.
Na história cristã mais recente, apropriação
cultural da história e da identidade de Israel é comum. E é a partir de um
contraste que poderemos delimitar um critério para a apropriação cultural que
esteja em conformidade com aquilo que vemos de mais interessante nas tradições
bíblicas. Em seu livro The Hebrew Bible, the Old Testament, and Historical
Criticism, Jon Levenson descreve duas apropriações culturais recentes, sem
chamá-las dessa forma, que movimentos religiosos e sociais fizeram da
identidade do antigo Israel. A primeira apropriação foi feita por um movimento
na Inglaterra do século XIX. Trata-se do movimento Anglo-Israelita, cuja proposta
era de que os verdadeiros israelitas eram fisicamente semelhantes aos
anglo-saxões, que agora são o verdadeiro Israel, pois o pecado do Israel étnico
fez com que sua fisionomia deteriorasse até ficarem como são os atuais judeus.
A segunda apropriação foi feita pelo movimento dos direitos civis de Martin
Luther King Jr. nos EUA. Em seus discursos, King se comparava a Moisés por não
entrar na terra prometida, mas sabendo que seu povo iria entrar. Levenson,
então, apresenta dois princípios fundamentais para uma correta apropriação da
narrativa do êxodo hoje: (1) o movimento Anglo-Israelita se identificou com
Israel em seu triunfo, enquanto King se identificou com Israel em seu
sofrimento; (2) o movimento Anglo-Israelita projetou seu próprio grupo no passado,
enquanto King trouxe o passado para o presente. A esses dois princípios, eu
incluo que uma apropriação cultural em conformidade com as tradições bíblicas
precisa apresentar algum tipo de inversão de valores na sociedade em que se
encontra. Tal apropriação cultural, portanto, será feita na identificação com
os fracos, aqueles que sofrem com a injustiça e a morte, e inverterá os típicos
valores humanos vistos nos poderosos da sociedade, colocando Deus do lado dos
mais fracos.
Agora podemos falar um pouco sobre teologias
identitárias e as representações artísticas de Jesus. O leitor atento já deve
ter percebido que a cor de Jesus não é um problema em si, mas faz parte de um
conjunto identitário cultural e social que, sim, é fundamental. Eu vou
esclarecer isso por meio de algumas artes representando o encontro de Jesus com
a mulher samaritana no Evangelho de João, capítulo 4.
Na Fig. 1, que você pode ver abaixo nos
comentários, temos a pintura do artista alemão Jan Joest Von Kalkar, do início
do século XVI. Toda a cena, desde os objetos, passando pela paisagem e
arquitetura, até a fisionomia dos personagens, está em conformidade com o
contexto do pintor e nada tem a ver com a palestina do primeiro século de nossa
era. Não há nada de errado com isso, pois não passa de uma adaptação com
propósitos comunicativos. Ou seja, é a arte na busca de transpor o abismo
contextual da realidade antiga para um público contemporâneo. O que temos, no
entanto, na história cristã, é a imposição dessa identidade européia da Idade
Média transferida para o contexto bíblico, especialmente da identidade de Jesus
(a projeção do grupo no passado, conforme a formulação de Levenson) como
realidade para outras culturas em outros contextos. A situação se complica
ainda mais quando essa imposição, no contexto das expansões colonialistas
européias, se torna militar, política e imperial. O Jesus branco não é um
problema meramente porque a cor de sua pela é historicamente imprecisa, mas por
toda a bagagem histórica, política e social que carrega (a projeção
triunfalista, conforme a formulação de Levenson). Essa teologia identitária do
Jesus/Deus branco e europeu, colonialista, poderoso e triunfalista, superior a
todas as outras identidades, na história do cristianismo, se impôs de tal forma
que ganhou caráter “neutro” e invisível. Certamente devemos estar gratos aos
estudos críticos e às teologias contextuais que apontaram o dedo para tamanho
disparate. Essa apropriação cultural, não necessariamente a da pintura de
Kalkar, mas daquilo que ela representa historicamente, nada tem a ver com as
apropriações culturais que encontramos nas tradições bíblicas. Ela é o exato
oposto das inversões de valores, como apresentei acima, e da lógica da
encarnação, como falarei abaixo.
Agora, vejam a Fig. 2 nos comentários abaixo.
Trata-se de uma pintura da mesma cena de João 4. A artista é Olivia Silva, uma
campesina da Nicarágua. Seu vilarejo foi destruído durante os conflitos
políticos no país nos anos 70 e, depois, reconstruído por seus habitantes nos
anos 80. Como no caso da pintura medieval germânica, aqui também temos toda a
cena em conformidade com o contexto da artista. De novo, é a arte na busca de
transpor o abismo contextual da realidade antiga para um público contemporâneo.
Seria, então, esse o outro lado da moeda do Jesus branco? Mais uma vez, a
bagagem histórica, política e social é o que determina a questão. Até onde
sabemos, nunca houve uma tentativa de impor essa identidade de Jesus acima de
outras culturas e identidades sociais, projetando a identidade do grupo no
passado e aceitando para si uma identidade triunfalista. Pelo contrário, para
uma população camponesa em meio a conflitos políticos que destruía seu país,
representar Jesus como um camponês nicaragüense comum, à espera de uma mulher
camponesa nicaragüense comum, está em conformidade com os critérios de
apropriação cultural que vemos nas tradições bíblicas. É a tentativa de se
identificar com Jesus em sua condição humana e sofrida, invertendo, assim, os
valores humanos do contexto da população nicaragüense. Jesus não está no poder
político ou revolucionário, e sim na vida camponesa comum que tenta
simplesmente viver bem. Essa é uma apropriação cultural, por meio de uma
“teologia” identitária, bem feita e alinhada com o que vemos nas tradições bíblicas.
Portanto, o Jesus camponês nicaragüense não é meramente o outro lado da moeda
do Jesus branco europeu medieval.
Por fim, para demonstrar que o critério de
adequação não está na etnia ou na cor de pele, vamos ver um Jesus branco
europeu bem diferente. Na Fig. 3 nos comentários abaixo, temos uma pintura do
artista alemão Edouard Von Gebhardt do início do século XX. A mesma cena do
Evangelho de João 4 é retratada no contexto da classe operária alemã. Jesus não
contém traços divinos, mas é retratado como um simples camponês. Sua expressão
facial é desgastada pelo esforço físico e suas roupas, incluindo o chapéu ao
lado descansando na ponta de um cajado, são bem distintas das características
físicas e vestimentas dos três homens ao fundo à direita, que parecem ser
membros da aristocracia. A expressão corporal dos três homens em relação às
mulheres parece bem ríspida, enquanto a interação corporal entre Jesus e a
mulher é bem amigável, pois eles parecem compartilhar de uma vida
semelhantemente sofrida, ela como uma simples operária e ele como um simples
camponês. Aqui, um Jesus branco e alemão é mais parecido com o Jesus camponês
nicaragüense da obra anterior do que o Jesus branco e alemão do século XVI. A
identidade desse Jesus camponês sofrido que interage com a classe operária
alemã do início do século XX não corresponde ao poder colonial alemão, muito
menos à ascensão militar alemã antecedendo a Primeira Guerra Mundial. Essa
apropriação cultural, com cor de pele branca e etnia européia, corresponde
muito bem ao critério alinhado com as tradições bíblicas.
E o menino negro, pobre, favelado e crucificado do
desfile da Mangueira? Diante de tudo o que apresentei aqui, é claro que essa
apropriação cultural corresponde ao critério alinhado com as tradições
bíblicas. A identificação se dá no nível do sofrimento e das injustiças, e não
do triunfo. Não se busca utilizar a identidade social do grupo atual para
remeter a uma identidade passada. Pelo contrário, há a atualização da
identidade passada no presente. E, como já indiquei no meu primeiro texto sobre
o samba-enredo (https://tinyurl.com/yx3krbgx), a apropriação é feita com o propósito de
comunicar uma inversão de valores da sociedade em que a manifestação artística
foi realizada. Deveríamos estar indignados se colocassem no desfile
carnavalesco um CEO de multinacional ou um líder político crucificado.
Agora podemos entender que o fundamento desse
critério está na lógica da encarnação. Três expressões neotestamentárias nos
ajudam aqui. Mateus usa a expressão “Emanuel”, que quer dizer “Deus conosco”,
no início de seu Evangelho (Mt 1.23). João utiliza a expressão “O verbo se fez
carne e tabernaculou entre nós” (Jo 1.14). E Paulo trabalha com duas imagens
importantes. A primeira delas usando um hino cristão anterior ao escrito
paulino: “[Jesus] esvaziou a si mesmo; assumiu a posição de escravo e nasceu
como ser humano” (Fp 2.7). A segunda fala sobre empobrecimento: “Vocês conhecem
a graça de nosso Senhor Jesus Cristo. Embora fosse rico, por amor a vocês ele
se fez pobre, para que por meio da pobreza dele vocês se tornassem ricos” (2Co
8.9). Em todos esses casos estamos lidando com a teologia da encarnação dos
primeiros cristãos. De forma mais explícita nos textos paulinos, mas implícita
na narrativa de todos os Evangelhos, vemos que a encarnação segue a lógica da
inversão de valores por meio da identificação de Deus, em Jesus, com a
realidade de vida sofrida, injustiçada e empobrecida de grupos sociais. Ora, se
isso não é importante, então Jesus poderia ter encarnado na família real de
Herodes e isso não faria diferença alguma. Se a identidade de Jesus e sua obra
salvadora tivessem somente a ver com perdão de pecados individuais, e sua morte
como uma punição pelo pecado, então ele poderia ter vindo como imperador romano
e morrido de velhice depois de desfrutar de uma vida tranqüila de paz e luxo.
Felizmente não é isso. Existe algo mais nessa história.
Esse algo mais é que a lógica da encarnação aponta
para identificação de Deus com os menos favorecidos. Por quê? Primeiro, porque
ele precisa estar acessível a todos. Se ele fosse rei, estaria acessível a
pouquíssimos. Segundo, porque para compartilhar da real identidade humana ele
precisava se identificar com a realidade da vasta maioria das pessoas, que é
uma realidade de pobreza e sofrimento. Terceiro, porque ele veio para afirmar
seu senhorio sobre tudo e todos não como aquele que está acima de tudo e todos,
mas exatamente por ter sido servo de todos. Essa é a inversão de valores que é
tão importante na tradição bíblica, especialmente na relação de Deus com a
criação e a humanidade. Como afirmei no texto anterior, o senhorio de Jesus é
estabelecido pela inversão do poder político e militar de Roma.
O menino negro, pobre, favelado e crucificado do
desfile da Mangueira está apontando para isso. Da mesma forma, o exemplo que
citei de Martin Luther King Jr. e as obras de arte das Figs. 2 e 3, também
apontam para isso. Como movimentos sociais e expressões artísticas, elas
conseguiram captar e expressar a essência da encarnação para seus propósitos
culturais e sociais. Ainda que isso possa ter relevância religiosa, na forma
como nos relacionamos com Deus, não é esse necessariamente o propósito e é
errado avaliar essas expressões a partir desse critério. E os campeões da
teologia evangélica conservadora e reformada se acham tão bons ao julgar uma
expressão artística sem pretensões religiosas usando um critério religioso.
Como afirmei no texto anterior, ainda fazem seu julgamento apresentando uma
visão tão estreita do significado do evangelho, da salvação e da identidade de
Jesus e sua obra.
No caso específico do desfile e do samba-enredo da
Mangueira, qual foi o problema teológico, caso fizéssemos uma avaliação por um
critério religioso? Certamente não é, como já afirmei, porque não mencionaram o
propósito da cruz para o perdão de pecados individuais. O problema é a
identificação das experiências de vida de um grupo social com Jesus
independentemente de como esse grupo social se identifica com Jesus. (“Eu tô
que tô dependurado; em cordéis e corcovados; mas será que todo povo entendeu o
meu recado? Porque, de novo, cravejaram o meu corpo”.) A encarnação não é
sofrimento à toa, como o mero compartilhar do sofrimento, mas é sofrimento em
favor do outro. A encarnação não é o esvaziar-se, o empobrecer-se, o
escravizar-se, o tabernacular, o estar conosco, em si, mas com o propósito de
favorecer o outro como dádiva divina que gera vida. E essa dádiva divina gera
um ciclo de vida a partir da integração e participação de outros nessa mesma
lógica. As expressões artísticas a partir de uma identidade social de Jesus,
assim como o os movimentos sociais que utilizam dessa identidade, podem até
estar alinhadas com a lógica da encarnação para seus propósitos. Contudo, a fim
de cumprir um real papel religioso a partir dessa lógica, é necessário que as
pessoas pertencentes a esse grupo social se submetam a essa lógica. É isso que
o Novo Testamento chama de “estar em Cristo”, ou seja, o caráter participatório
dessa identidade. E aí, então, podemos falar de pecado. O que Jesus fez na cruz
faz parte dessa lógica da encarnação num mundo repleto de pecado, ou seja,
injustiças, imoralidades, violência e morte, aquilo que fere os propósitos de
Deus para sua criação. Jesus lidou com o pecado na cruz, sim. Mas foi um lidar
de quem tira do pecado toda a sua força por se deixar morrer por ele. É a
lógica do senhorio de Jesus sobre todo poder humano e diabólico, obtido
exatamente por se deixar padecer na mão deles. A cruz é o trono de Jesus.
Não se trata de olhar para a cruz e ver ali o seu
pecado, mas de olhar para cruz e saber que é por essa lógica da auto-entrega
que o seu pecado é lidado e aniquilado. É esse tipo de identificação com Jesus
que é necessária, como Paulo fala em Romanos 12 sobre entregar o nosso corpo em
sacrifício e que essa é a nossa adoração lógica – ou seja, que segue a lógica
da encarnação e da obra de Jesus. O jovem negro, pobre e favelado está numa
situação muito melhor para entender essa lógica, receber essa dádiva divina, e
participar dela, do que o velho branco da Europa medieval. Assim como os
camponeses galileus do primeiro século estavam numa situação muito melhor para
entender isso do que Herodes, César ou os membros do Sinédrio. Por isso é mais
fácil um camelo passar pela cabeça de uma agulha do que o rico entrar no reino
de Deus. Você quer enfatizar o peso do pecado na definição do evangelho? Então
é necessário falar sobre a lógica da auto-entrega como meio de participar da
identidade de Jesus e sua obra de salvação. O evangelho, no que diz respeito ao
pecado, não é mero perdão de pecados individuais, ainda que isso seja parte
essencial de nossa relação com Deus e, portanto, esteja incluído no evangelho.
A questão do pecado no evangelho é sobre tomar a sua cruz, se esvaziar de si
mesmo e se tornar servo de todos para que todos tenham vida. E é aqui que acho
que a mensagem da Mangueira tem algo melhor a dizer do que a “correção”
oferecida pelos teólogos evangélicos. Essa lógica da encarnação, da identidade
de Jesus e sua obra salvadora me parece ter mais potencial de conscientização
na representação artística de Jesus do que na teologia evangélica do perdão dos
pecados individuais. Minha religiosidade tem no perdão divino dos meus pecados
um fundamento certo. Contudo, a cruz, como parte da encarnação, parece apontar
para algo maior sobre a lógica divina para acabar com a morte e gerar vida.
Essa é a lógica da auto-entrega em favor daqueles que mais sofrem com as
consequências cosmológicas e sociais do pecado. Diante da representação de
Jesus pela Mangueira, o caminho para buscar essa identificação com Jesus, receber
a dádiva divina e se tornar participante com Jesus dessa economia divina parece
melhor do que a teologia evangélica da cruz como mero instrumento divino para
perdoar pecados. Talvez seja por isso que Mateus fale sobre o juízo final da
forma como falou. Os que são integrados como participantes da vida de Jesus são
aqueles que se identificaram com os famintos, sedentos, estrangeiros,
desnudados, enfermos e aprisionados. Essa identificação se deu por práticas de
auto-entrega em favor dessas pessoas – ou seja, uma identificação que segue a
lógica da encarnação, do esvaziamento, do empobrecimento, da escravização, do
tabernacular e do ser com o outro em favor do outro.
Fig. 1: Representação do encontro
entre Jesus e a mulher samaritana (João 4), por Jan Joest von Kalkar, Alemanha,
1505-1508.
Fig. 2: Representação do encontro
entre Jesus e a mulher samaritana (João 4), por Olivia Silvia, Nicarágua,
1981-1982.
Fig. 3: Representação do encontro
entre Jesus e a mulher samaritana (João 4), por Edouard von Gebhardt, Alemanha,
1914.
Por causa da mídia, não quis
introduzir no corpo do texto as referências bibliográficas diretas que
utilizei.
Para o exemplo do livro de Êxodo, utilize Joshua Berman, Inconsistency in the Torah: Ancient Literary Convention and the Limits of Source Criticism. Oxford: Oxford University Press.
Para as referências artísticas de João 4, utilizei Janeth Norfleete Day, The Woman at the Well: Interpretation of John 4:1-42 in Retrospect and Prospect. Leiden: Brill, 2002. Infelizmente não foi possível encontrar reproduções coloridas das Figs. 2 e 3.
Para o exemplo do livro de Êxodo, utilize Joshua Berman, Inconsistency in the Torah: Ancient Literary Convention and the Limits of Source Criticism. Oxford: Oxford University Press.
Para as referências artísticas de João 4, utilizei Janeth Norfleete Day, The Woman at the Well: Interpretation of John 4:1-42 in Retrospect and Prospect. Leiden: Brill, 2002. Infelizmente não foi possível encontrar reproduções coloridas das Figs. 2 e 3.
acessado em 01/03/2020 às 10:57h
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