A teologia judaico-cristã é fruto de um contexto social e histórico pautado no patriarcalismo, que por sua vez traz uma compreensão assimétrica de gênero, ou seja, a mulher era tida como inferior ao homem, e até mesmo incapaz de exercer atividades que no passado eram tidas como "naturalmente" masculinas. Não por acaso, a atividade sacerdotal, no contexto hebraico da Antiguidade, era exclusivamente masculina. Até aí, uma boa hermenêutica já possibilita fazer uma crítica. Contudo, chama a atenção uma das tentativas teológicas para legitimar a superioridade espiritual masculina nos dias de hoje, com o uso do conceito de "sacerdote do lar", uma responsabilidade dos homens em conduzir suas famílias no caminho cristão.
O problema, para além de todo debate hermenêutico, é que esse conceito de "sacerdote do lar" não tem sentido algum, e teologicamente não se sustenta. Claro que o sacerdócio no mundo judaico, como já dito, era exclusivamente masculino, mas em momento algum o Antigo Testamento apresenta o homem/marido/pai como um sacerdote para a sua família, dentro de sua casa. O sacerdócio, na verdade, era uma prática restrita a uma linhagem familiar, não sendo nunca uma possibilidade a todo e qualquer homem. Religiosamente falando, o sacerdote é a pessoa que faz uma mediação entre o fiel e o sagrado, sendo alguém separado dos demais e tendo a capacidade de conduzir os rituais que os leigos participam.
Logo, ainda que um homem/marido/pai fosse tido, dentro de um contexto patriarcal, como hierarquicamente superior e "governante" da casa (vale notar que a mulher israelita chamava o marido de "baal", isto é, o "senhor" e mesmo seu "dono"), sendo o dever deste homem conduzir sua família ao culto no templo, ele nunca foi tido na Bíblia como um mediador espiritual entre sua família e Deus, como uma pessoa necessária e intermediária para a espiritualidade dos demais de sua casa. Já no Novo Testamento, esse conceito de "sacerdote do lar" se torna ainda mais absurdo. Se tomarmos a tradição protestante reformada como referência, devemos entender que não existe mais o ofício sacerdotal. Nem mesmo um pastor/bispo é um sacerdote na teologia reformada. Toda pessoa cristã é sacerdote (1 Pedro 2.9; Apocalipse 1.6), sendo Cristo o único mediador por meio de quem é possível ter acesso direto a Deus (1 Timóteo 2.5). Não há outros sacerdotes nem mediadores, seja Maria, outros "santos", ou mesmo pastores/bispos/padres/papas (pretensos sacerdotes em muitas denominações cristãs). O Novo Testamento apresenta o "sacerdócio universal dos cristãos", um dos pontos defendidos na Reforma Protestante.
Portanto, a compreensão de que o sexo masculino teria a incumbência de exercer um "sacerdócio no lar" é teologicamente errada, e só se mantém porque muitos homens insistem em uma necessidade de afirmação de poder, e não de serviço e submissão recíproca. Sei que há outros textos bíblicos que são usados para justificar uma assimetria entre homens e mulheres, que podem ser interpretados para legitimar a liderança masculina e seu governo sobre a casa, mas não pretendo debater tais textos. Essa minha crítica não tem o objetivo de fazer um estudo exaustivo sobre esse tema, e sim de mostrar como a expressão de sacerdote do lar, além de não estar na Bíblia, é anti-bíblica, e deveria ser rejeitada por quem afirma ter como "regra de fé e prática" os livros bíblicos. No fundo, esse pessoal que precisa ficar afirmando essa suposta superioridade masculina o tempo todo deveria tentar resolver isso fazendo terapia...
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