sábado, 6 de maio de 2017

O Dasein é um ente hermenêutico...


O ser humano é uma máquina de atribuir sentido... Mesmo quando alguém diz, de modo niilista, que o mundo não tem sentido, que tanto-faz-tanto-fez, ele está lhe atribuindo sentido... No dizer de Niklas Luhmann, o sentido é uma 'forma' sem outro lado... Dizer que algo não faz sentido já é lhe atribuir o sentido de confuso, intrincado, inexpugnável.
Na arte de interpretar leis, em busca de 'normas', os intérpretes deparam-se com os problemas inerentes a toda e qualquer interpretação. De partida, há o problema da atribuição do significado... Mesmo quando promovida de modo automático, irrefletido, sem colocar o mundo em questão, a tarefa hermenêutica está sempre presente, à semelhança do tom racista com que deve necessariamente ser recebido qualquer uso da suástica, depois da ignomínia do seu emprego nazista, ou à semelhança da compreensão de expressões como 'bom dia!'... Claro que, no cotidiano, não raro, a interpretação se dá de modo imediato, sem a necessidade de um trabalho mais acurado de reflexão sobre o sentido do 'quid'...
Talvez seja por isso que, ainda hoje, haja quem ingenuamente imagine que 'in claris non fit interpretatio'..., como se apenas houvesse interpretação em casos difíceis. É ingênuo, digo, eis que saber se algo é claro ou ambíguo já depende de alguma atividade hermenêutica, mesmo que irrefletida. O problema é que, como todos sabemos, a linguagem é polissêmica. O sentido depende de contexto. Melhor dizer: o sentido de algo depende também da atribuição de sentido para o que chamamos de contexto. Saber o que uma asserção significa também depende, em muitos casos - mas, não em todos - da intenção com que se imagina que tenha sido empregada pelo falante (aparentes elogios podem facilmente ser traduzidos em ofensas, se constatada a presença de um tom irônico na fala, por exemplo).
 Em outras tantas hipóteses, depende muito mais de alguma tradição - e claro que a tradição importa sempre! -, a exemplo da interpretação das obras de William Shakespeare, Homero, Camões, para mencionar apenas os clássicos... No geral, dado que a atribuição de sentido se dá de modo inconsciente, a hermenêutica não se convola em um problema de decisão ou de escolha. Parece não haver alternativas: o sentido é esse... E ponto! Em outras tantas hipóteses, todavia - sobremodo no trabalho deliberado, meditativo -, fica nítida a existência de distintas possibilidades, distintos sentidos, distintas interpretações cabíveis...
E esse é o cotidiano dos juízes. Claro que, em muitos temas, também aqui, frequentemente a interpretação parece ser única e o problema não se coloca. No geral, todavia, diante do mesmo caso, e da mesma lei, percebe-se facilmente haver inúmeras alternativas..., impondo-se a necessidade de JUSTIFICAÇÃO da escolha..., o que jamais pode ser empreendido ao estilo robisonada (criticada por Gadamer), exigindo-se respeito à racionalidade pública, compartilhada pela comunidade de falantes (o que não se traduz em subserviência às maiorias de ocasião...).
Claro que parece equivocado imaginar que a interpretação seja um problema de vontade, de deliberação ou de sentimento..., eis que tais categorias estão impregnadas de uma nota de irracionalidade, de intuição, insuscetível daquele controle sobre a atuação dos agentes políticos, prometida pelo Iluminismo. Daí que, de modo contrafático, seja necessário falar em direito 'à resposta correta' em matéria de interpretação, o que não significa que haja tal resposta correta, compreendida como algo singular e acurado. O risco de se falar em resposta correta, em temática dessa ordem, é de se vender a ideia de que a resposta correta é aquela que 'eu defendo'! E ponto.
Voltando ao problema... Toda interpretação depende também da seleção do que será interpretado. Quais textos legais interessam ao caso? Quais fontes normativas? O que será examinado? Nesse âmago, existe uma interconexão profunda entre identificação dos fatos relevantes para o caso - i.e., interpretação das provas tidas por relevantes ao thema decidendum - e a interpretação das fontes normativas cuja relevância para o caso decorre justamente da atribuição de sentido para as provas... É uma mútua afetação, como dizia... Kant já sabia que não se pode ensinar o 'juízo', compreendido como a capacidade humana de reconhecer um fato como o caso de uma lei (reconhecer que normas são relevantes para um dado caso... reconhecer quando um fato pode ser imaginado como hipótese de aplicação de uma tal norma e não de outra...).
Não se pode ensinar lógica para quem não tenha capacidade de pensar logicamente, ainda que tal capacidade - se presente - possa ser depurada. No exemplo de Hegenberg, precisa-se de aço para se forjar martelos e precisa-se de martelos para se forjar o aço... Paradoxal... Mas, no cotidiano, martelos são feitos e o aço é forjado..., cuidando-se muito mais de um problema de refinamento do que se tem. Não raro, recai-se, com isso, no problema do método - o caminho correto, segundo Descartes -, como se isso garantisse a resposta correta. O problema todo é que métodos há vários e não há método para escolha do método... No âmbito do discurso jurídico, isso se traduz no problema da CONTINGÊNCIA da seleção das premissas externas (Jerzy Wróblewski) do raciocínio jurídico (o ponto de partida do discurso). Dado que a própria Constituição também é polissêmica e pode dar margens a distintas interpretações, como justificar a interpretação da própria Lei Maior...? Claro que há interpretações melhores e piores... Claro também que a racionalidade prática nos outorgou, ao longo de gerações, chaves de leitura... Mas, isso não é garantia de muita coisa, dado que a tradição também pode ser iníqua e estar equivocada..., como, não raro, está.
Todo esse discurso tem alguma nota de RELATIVISMO, o que não é ruim, se compreendido como tolerância com o que pode ser tolerado... Dado, porém, que toda interpretação depende também - querendo ou não - de quem interpreta, é fato que os bens de muitas pessoas podem depender, querendo ou não, do fator SORTE, AZAR, de humores, metarregras e idiossincrasias de quem decide... E isso parece inadmissível, sob qualquer concepção de democracia, diante de juízes não eleitos, cujos votos não podem ser controlados senão diante da ilusão de que a lei vincula...
Claro que há construtos regulativos que buscam racionalizar/axiomatizar os valores alheios (juiz Hércules do Dworkin, auditório universal do Peirce, Habermas, Perelman, condições ideais de fala do Habermas, imperativo categórico do Kant, diferença entre exame prima facie e tomando tudo em conta, Bayon). No final de contas, todavia, tais construtos são insuficientes, dado o risco de que meramente racionalizem/projetem os valores de quem os emprega (leia-se Kelsen. O problema da justiça, em contraponto com a Ilusão da Justiça, do mesmo autor).
A interpretação de leis não se distancia da interpretação da arte, salvo, talvez, pelo seu emprego pragmático (decidir sobre a vida alheia). Não há como alguém afiançar, de modo acurado, que a interpretação de uma obra de arte deva ser necessariamente essa ou aquela... Mas, ficamos nós, ainda hoje, dependentes dos rompantes, dos complexos e traumas que habitam a psique de quem decide em nome alheio. Isso é incontornável, inexorável...., mesmo quando seja simplesmente olvidado, colocado em epochè no âmbito de um discurso (jurídico) que trabalha muito com idealizações e talvez não perceba que, no cotidiano, muitas vezes, decide-se primeiro, justifica-se depois... (e não deveria ser assim!!!)
Observação: Dasein é o termo principal na filosofia existencialista de Martin Heidegger. Na sua obra Ser e tempo, Heidegger se põe a questão filosófica do ser.

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O Dasein é um ente hermenêutico...


O ser humano é uma máquina de atribuir sentido... Mesmo quando alguém diz, de modo niilista, que o mundo não tem sentido, que tanto-faz-tanto-fez, ele está lhe atribuindo sentido... No dizer de Niklas Luhmann, o sentido é uma 'forma' sem outro lado... Dizer que algo não faz sentido já é lhe atribuir o sentido de confuso, intrincado, inexpugnável.
Na arte de interpretar leis, em busca de 'normas', os intérpretes deparam-se com os problemas inerentes a toda e qualquer interpretação. De partida, há o problema da atribuição do significado... Mesmo quando promovida de modo automático, irrefletido, sem colocar o mundo em questão, a tarefa hermenêutica está sempre presente, à semelhança do tom racista com que deve necessariamente ser recebido qualquer uso da suástica, depois da ignomínia do seu emprego nazista, ou à semelhança da compreensão de expressões como 'bom dia!'... Claro que, no cotidiano, não raro, a interpretação se dá de modo imediato, sem a necessidade de um trabalho mais acurado de reflexão sobre o sentido do 'quid'...
Talvez seja por isso que, ainda hoje, haja quem ingenuamente imagine que 'in claris non fit interpretatio'..., como se apenas houvesse interpretação em casos difíceis. É ingênuo, digo, eis que saber se algo é claro ou ambíguo já depende de alguma atividade hermenêutica, mesmo que irrefletida. O problema é que, como todos sabemos, a linguagem é polissêmica. O sentido depende de contexto. Melhor dizer: o sentido de algo depende também da atribuição de sentido para o que chamamos de contexto. Saber o que uma asserção significa também depende, em muitos casos - mas, não em todos - da intenção com que se imagina que tenha sido empregada pelo falante (aparentes elogios podem facilmente ser traduzidos em ofensas, se constatada a presença de um tom irônico na fala, por exemplo).
 Em outras tantas hipóteses, depende muito mais de alguma tradição - e claro que a tradição importa sempre! -, a exemplo da interpretação das obras de William Shakespeare, Homero, Camões, para mencionar apenas os clássicos... No geral, dado que a atribuição de sentido se dá de modo inconsciente, a hermenêutica não se convola em um problema de decisão ou de escolha. Parece não haver alternativas: o sentido é esse... E ponto! Em outras tantas hipóteses, todavia - sobremodo no trabalho deliberado, meditativo -, fica nítida a existência de distintas possibilidades, distintos sentidos, distintas interpretações cabíveis...
E esse é o cotidiano dos juízes. Claro que, em muitos temas, também aqui, frequentemente a interpretação parece ser única e o problema não se coloca. No geral, todavia, diante do mesmo caso, e da mesma lei, percebe-se facilmente haver inúmeras alternativas..., impondo-se a necessidade de JUSTIFICAÇÃO da escolha..., o que jamais pode ser empreendido ao estilo robisonada (criticada por Gadamer), exigindo-se respeito à racionalidade pública, compartilhada pela comunidade de falantes (o que não se traduz em subserviência às maiorias de ocasião...).
Claro que parece equivocado imaginar que a interpretação seja um problema de vontade, de deliberação ou de sentimento..., eis que tais categorias estão impregnadas de uma nota de irracionalidade, de intuição, insuscetível daquele controle sobre a atuação dos agentes políticos, prometida pelo Iluminismo. Daí que, de modo contrafático, seja necessário falar em direito 'à resposta correta' em matéria de interpretação, o que não significa que haja tal resposta correta, compreendida como algo singular e acurado. O risco de se falar em resposta correta, em temática dessa ordem, é de se vender a ideia de que a resposta correta é aquela que 'eu defendo'! E ponto.
Voltando ao problema... Toda interpretação depende também da seleção do que será interpretado. Quais textos legais interessam ao caso? Quais fontes normativas? O que será examinado? Nesse âmago, existe uma interconexão profunda entre identificação dos fatos relevantes para o caso - i.e., interpretação das provas tidas por relevantes ao thema decidendum - e a interpretação das fontes normativas cuja relevância para o caso decorre justamente da atribuição de sentido para as provas... É uma mútua afetação, como dizia... Kant já sabia que não se pode ensinar o 'juízo', compreendido como a capacidade humana de reconhecer um fato como o caso de uma lei (reconhecer que normas são relevantes para um dado caso... reconhecer quando um fato pode ser imaginado como hipótese de aplicação de uma tal norma e não de outra...).
Não se pode ensinar lógica para quem não tenha capacidade de pensar logicamente, ainda que tal capacidade - se presente - possa ser depurada. No exemplo de Hegenberg, precisa-se de aço para se forjar martelos e precisa-se de martelos para se forjar o aço... Paradoxal... Mas, no cotidiano, martelos são feitos e o aço é forjado..., cuidando-se muito mais de um problema de refinamento do que se tem. Não raro, recai-se, com isso, no problema do método - o caminho correto, segundo Descartes -, como se isso garantisse a resposta correta. O problema todo é que métodos há vários e não há método para escolha do método... No âmbito do discurso jurídico, isso se traduz no problema da CONTINGÊNCIA da seleção das premissas externas (Jerzy Wróblewski) do raciocínio jurídico (o ponto de partida do discurso). Dado que a própria Constituição também é polissêmica e pode dar margens a distintas interpretações, como justificar a interpretação da própria Lei Maior...? Claro que há interpretações melhores e piores... Claro também que a racionalidade prática nos outorgou, ao longo de gerações, chaves de leitura... Mas, isso não é garantia de muita coisa, dado que a tradição também pode ser iníqua e estar equivocada..., como, não raro, está.
Todo esse discurso tem alguma nota de RELATIVISMO, o que não é ruim, se compreendido como tolerância com o que pode ser tolerado... Dado, porém, que toda interpretação depende também - querendo ou não - de quem interpreta, é fato que os bens de muitas pessoas podem depender, querendo ou não, do fator SORTE, AZAR, de humores, metarregras e idiossincrasias de quem decide... E isso parece inadmissível, sob qualquer concepção de democracia, diante de juízes não eleitos, cujos votos não podem ser controlados senão diante da ilusão de que a lei vincula...
Claro que há construtos regulativos que buscam racionalizar/axiomatizar os valores alheios (juiz Hércules do Dworkin, auditório universal do Peirce, Habermas, Perelman, condições ideais de fala do Habermas, imperativo categórico do Kant, diferença entre exame prima facie e tomando tudo em conta, Bayon). No final de contas, todavia, tais construtos são insuficientes, dado o risco de que meramente racionalizem/projetem os valores de quem os emprega (leia-se Kelsen. O problema da justiça, em contraponto com a Ilusão da Justiça, do mesmo autor).
A interpretação de leis não se distancia da interpretação da arte, salvo, talvez, pelo seu emprego pragmático (decidir sobre a vida alheia). Não há como alguém afiançar, de modo acurado, que a interpretação de uma obra de arte deva ser necessariamente essa ou aquela... Mas, ficamos nós, ainda hoje, dependentes dos rompantes, dos complexos e traumas que habitam a psique de quem decide em nome alheio. Isso é incontornável, inexorável...., mesmo quando seja simplesmente olvidado, colocado em epochè no âmbito de um discurso (jurídico) que trabalha muito com idealizações e talvez não perceba que, no cotidiano, muitas vezes, decide-se primeiro, justifica-se depois... (e não deveria ser assim!!!)
Observação: Dasein é o termo principal na filosofia existencialista de Martin Heidegger. Na sua obra Ser e tempo, Heidegger se põe a questão filosófica do ser.