sábado, 9 de janeiro de 2016

Cristãos em tempos de extermínio – quando o outro perde o direito de existir



Seríamos mais felizes se nossos inimigos não existissem. Comecei a pensar nessa frase após uma aula de perspectiva histórica sobre o cristianismo desde o ano I até os dias de hoje. O grande ponto em questão aqui é: quem é nosso verdadeiro inimigo? Serão os adeptos de outras religiões? Serão os que encabeçam ou defendem causas que parecem nos desafiar? Serão os organizadores de marchas e eventos que possam confrontar nossos valores e princípios?
Ao pensar nas cruzadas entendo que zelo sem conhecimento, discernimento ou preparo não resulta em outra coisa senão um massacre, um atentado contra a humanidade. A falta de atenção aos modelos históricos estão nos afetando por demais, no sentido de que constantemente vivemos à beira de cometermos os mesmos erros.
Não, não somos nada originais em nosso pecado. Massacramos o outro ao simplesmente ignorar que a ele pertence por direito a condição de pessoa, não de objeto. Destruímos o que há de mais belo na criação de Deus quando destituímos o outro de sua singularidade enquanto pessoa, de sua cultura, de seu saber. Até mesmo quando vetamos ao outro o simples direito de escolha, ainda que o defendamos para nós mesmos.
Porém, ao ser confrontada ontem pelas marcas da história, me dei conta de que não somos nada originais também em nosso desejo de aniquilar aquele a quem consideramos uma ameaça às nossas convicções. Como os cristãos que se juntaram a Gengis Khan em sua tentativa de se verem livres de uma vez por todas dos árabes (na época tão tolerantes com sua vida de fé), hoje nos vemos rodeados de iniciativas não menos impetuosas de acabar com a vida, os direitos civis e a voz de quem toma o lugar e age onde julgamos nos pertencer.
 Nos consideramos deuses de nosso país, onde somente a marcha por aquilo que defendemos pode ter vez, ainda que por meios escusos, ainda que promova mais nosso ego do que necessariamente os valores que dizemos pregar. Em nossa vaidade, preferimos ignorar a existência daqueles que em nada acrescentam à causa que dizemos defender, nada fazendo por vidas que estão sendo dizimadas (como os indígenas brasileiros e outros grupos não menos marginalizados), e colocando em dúvida a ação e motivação daqueles que se põem em sua defesa.
Talvez até mesmo haja em nosso meio aqueles que se sentiriam aliviados caso houvesse um real extermínio de toda a classe LGBT, já que ainda com o discurso de amor não há de fato uma realidade em nossas igrejas que demonstre aceitação e convivência pacífica disponível para receber tais pessoas. Dizemos que amamos, mas não criamos, na prática, condições para que estas pessoas sejam bem recebidas e convivam tranquilamente em nossas comunidades.
No ano em que o Mein Kampf (‘Minha luta’, livro de Adolf Hitler) ganha domínio público e já desperta discussões sobre a disseminação de suas ideias, não duvido nem um pouco que o pensamento nele contido já tenha tomado forma nos corações de muitos que se dizem cristãos no sentido de, lá no fundo, pensar que o sossego, a paz, a expansão da cristandade em liberdade e o estabelecimento da justiça estejam condicionados ao extermínio, ainda que em termos “apenas” de desaparecimento, daqueles que representam oposição, ameaça ou até mesmo confronto aos seus ideias e valores.
E pensar que as aulas de história já não são mais tão valorizadas – o que é uma pena. Considero que toda igreja cristã que se preze deveria dedicar tempo no ensino e reflexão históricos, exatamente porque incorremos nos mesmos erros que tantos cristãos na história vieram a cometer.
Ao pensar na vida de Jesus Cristo, não é possível deixar de nos envergonharmos em nosso ímpeto pela anulação do outro. Jesus, que foi perfeito e fiel até a morte, insistiu em olhar o outro com graça, verdade e misericórdia, se deixando entregar nas mãos daqueles que o confrontavam, sem nunca atentar contra seus direitos civis, sua liberdade ou suas vidas. Nos identificamos com Jesus Cristo ao nos autodenominarmos ‘cristãos’, porém em nossa atitude agimos muito mais coerentemente com as ideias do Mein Kampf - justificando a aniquilação do outro com fins superiores-, com a linha de raciocínio dos cruzados - estuprando a consciência alheia em nome de Deus- ou com os cristãos que se juntaram a Gengis Kahn, utilizando-nos de meios políticos, econômicos e militares para destituir o outro de sua condição humana em seus direitos de existir como tal.
Que em meios às turbulentas épocas em que vivemos, sejamos mais coerentes com os modelos históricos que se identificaram com Jesus Cristo do que com aqueles que levaram a ferro e fogo suas convicções, a ponto de se considerarem superiores em sua práxis missionária. Que sejamos mais sensíveis à condição humana que nos cerca e que não lutemos por direitos que não estejamos dispostos a compartilhar com todos, independentemente de sua fé e prática.
O que mais me preocupa em nossos dias, não é a ação de grupos que pensam diferente de nós, mas a incoerência de nossas ações com relação ao evangelho que pregamos. Nesse sentido, a história que estamos escrevendo para as futuras gerações não difere em nada das cruzadas, do massacre dos mongóis ou do holocausto judeu.


Angela Natel – 09/01/2016

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Cristãos em tempos de extermínio – quando o outro perde o direito de existir



Seríamos mais felizes se nossos inimigos não existissem. Comecei a pensar nessa frase após uma aula de perspectiva histórica sobre o cristianismo desde o ano I até os dias de hoje. O grande ponto em questão aqui é: quem é nosso verdadeiro inimigo? Serão os adeptos de outras religiões? Serão os que encabeçam ou defendem causas que parecem nos desafiar? Serão os organizadores de marchas e eventos que possam confrontar nossos valores e princípios?
Ao pensar nas cruzadas entendo que zelo sem conhecimento, discernimento ou preparo não resulta em outra coisa senão um massacre, um atentado contra a humanidade. A falta de atenção aos modelos históricos estão nos afetando por demais, no sentido de que constantemente vivemos à beira de cometermos os mesmos erros.
Não, não somos nada originais em nosso pecado. Massacramos o outro ao simplesmente ignorar que a ele pertence por direito a condição de pessoa, não de objeto. Destruímos o que há de mais belo na criação de Deus quando destituímos o outro de sua singularidade enquanto pessoa, de sua cultura, de seu saber. Até mesmo quando vetamos ao outro o simples direito de escolha, ainda que o defendamos para nós mesmos.
Porém, ao ser confrontada ontem pelas marcas da história, me dei conta de que não somos nada originais também em nosso desejo de aniquilar aquele a quem consideramos uma ameaça às nossas convicções. Como os cristãos que se juntaram a Gengis Khan em sua tentativa de se verem livres de uma vez por todas dos árabes (na época tão tolerantes com sua vida de fé), hoje nos vemos rodeados de iniciativas não menos impetuosas de acabar com a vida, os direitos civis e a voz de quem toma o lugar e age onde julgamos nos pertencer.
 Nos consideramos deuses de nosso país, onde somente a marcha por aquilo que defendemos pode ter vez, ainda que por meios escusos, ainda que promova mais nosso ego do que necessariamente os valores que dizemos pregar. Em nossa vaidade, preferimos ignorar a existência daqueles que em nada acrescentam à causa que dizemos defender, nada fazendo por vidas que estão sendo dizimadas (como os indígenas brasileiros e outros grupos não menos marginalizados), e colocando em dúvida a ação e motivação daqueles que se põem em sua defesa.
Talvez até mesmo haja em nosso meio aqueles que se sentiriam aliviados caso houvesse um real extermínio de toda a classe LGBT, já que ainda com o discurso de amor não há de fato uma realidade em nossas igrejas que demonstre aceitação e convivência pacífica disponível para receber tais pessoas. Dizemos que amamos, mas não criamos, na prática, condições para que estas pessoas sejam bem recebidas e convivam tranquilamente em nossas comunidades.
No ano em que o Mein Kampf (‘Minha luta’, livro de Adolf Hitler) ganha domínio público e já desperta discussões sobre a disseminação de suas ideias, não duvido nem um pouco que o pensamento nele contido já tenha tomado forma nos corações de muitos que se dizem cristãos no sentido de, lá no fundo, pensar que o sossego, a paz, a expansão da cristandade em liberdade e o estabelecimento da justiça estejam condicionados ao extermínio, ainda que em termos “apenas” de desaparecimento, daqueles que representam oposição, ameaça ou até mesmo confronto aos seus ideias e valores.
E pensar que as aulas de história já não são mais tão valorizadas – o que é uma pena. Considero que toda igreja cristã que se preze deveria dedicar tempo no ensino e reflexão históricos, exatamente porque incorremos nos mesmos erros que tantos cristãos na história vieram a cometer.
Ao pensar na vida de Jesus Cristo, não é possível deixar de nos envergonharmos em nosso ímpeto pela anulação do outro. Jesus, que foi perfeito e fiel até a morte, insistiu em olhar o outro com graça, verdade e misericórdia, se deixando entregar nas mãos daqueles que o confrontavam, sem nunca atentar contra seus direitos civis, sua liberdade ou suas vidas. Nos identificamos com Jesus Cristo ao nos autodenominarmos ‘cristãos’, porém em nossa atitude agimos muito mais coerentemente com as ideias do Mein Kampf - justificando a aniquilação do outro com fins superiores-, com a linha de raciocínio dos cruzados - estuprando a consciência alheia em nome de Deus- ou com os cristãos que se juntaram a Gengis Kahn, utilizando-nos de meios políticos, econômicos e militares para destituir o outro de sua condição humana em seus direitos de existir como tal.
Que em meios às turbulentas épocas em que vivemos, sejamos mais coerentes com os modelos históricos que se identificaram com Jesus Cristo do que com aqueles que levaram a ferro e fogo suas convicções, a ponto de se considerarem superiores em sua práxis missionária. Que sejamos mais sensíveis à condição humana que nos cerca e que não lutemos por direitos que não estejamos dispostos a compartilhar com todos, independentemente de sua fé e prática.
O que mais me preocupa em nossos dias, não é a ação de grupos que pensam diferente de nós, mas a incoerência de nossas ações com relação ao evangelho que pregamos. Nesse sentido, a história que estamos escrevendo para as futuras gerações não difere em nada das cruzadas, do massacre dos mongóis ou do holocausto judeu.


Angela Natel – 09/01/2016