Kafka, Giacometti e Beckett.
Um século depois da primeira publicação de A Metamorfose, de Kafka, a gente se pergunta: no que nos transformamos, nos transmutamos, nesses últimos cem anos?
Kafka ignora tanto Darwin quanto a ideologia do progresso ou qualquer outra utopia global. O mundo estava em guerra. E não era qualquer guerra. Sua Checoslováquia ainda estava sob o domínio do império Austro-Húngaro e era um daqueles imbróglios nacionalistas criados ainda em fins do século XIX e que ainda dão dor de cabeça ao mundo de hoje.
Mas em que nos transformamos? Que fizemos de nós depois de Gregor Samsa?
Kafka não viveu para ver o nazismo. Nem mesmo sua prodigiosa mente poderia supor do que homem era capaz. Gregor, misteriosamente, se metamorfoseou em um grande inseto, uma barata talvez. Hitler memorfoseou os judeus em ratos. Kafka não viu a Segunda Guerra Mundial. Beckett viu. Viu e deixou a todos Esperando Godot.
O pesadelo de Beckett é nos transformarmos em baratas sem nos metamorfosearmos em baratas, o que é pior. A barata para a barata não causa nenhum asco. Asco é sentirmo-nos baratas ainda que humanos. Do alto de nossa presunção, nem nos damos conta do asco que devemos provocar às baratas.
Kafka não viveu para ver a bomba atômica. Havia baratas também em Hiroshima e Nagasaki. E humanos. As baratas sobreviveram ao Little Boy do B-29 de quem dona Enola Gay deve ter dito: "meu garoto!". As baratas e Kokura. Essa, graças ao "sabe-se la por quê" céu nublado daquela manhã de agosto de 1945.
Entre mortos e feridos, o homem sobreviveu. Metamorfoseado, é verdade. "Depois de Auschwitz, a poesia não tem mais sentido", sentenciou o baratizado Theodor Adorno. O melhor retrato desse homem quem fez foi o ítalo-suíço Giacometti. Giacometti é de chorar. Seu homem é um errante, da bitola da estreiteza de seu caminho. Ele não mais olha para os lados. Não mais se dá o direito a distrações. É um esboço mal feito do 'homo sapiens'. Seu "Homem Que Caminha", símbolo da humanidade, é um tapa na cara do renascentista Davi de Michelângelo.
Mas Giacometti, apesar de tudo, era um otimista. Seu "homem" ainda está de pé. E caminha. Ainda há chão e futuro. Não era, claro, o mesmo chão do nipo-americano Fukuyama e sua crença no triunfo da "idéia ocidental". Tanto as alternativas soviéticas como também as democracias liberais se exauriram. A atual crise dos refugiados, mais que uma crise humanitária, é uma crise da humanidade. Desde o homo Erectus, o homem é um refugiado.
E o "Homem Que Caminha" anda. Como um hebreu. Quem o vê, vê um misto de certeza e dúvida, de desespero e esperança, de equilíbrio e instabilidade. É a imagem icônica representativa do Eterno Retorno de Nietzsche. É o enlameado Adão do Gênesis, um dia expulso do paraíso, voltando para casa, que não é mais, imagina, a caverna de Platão.
Giacometti e Kafka podem dizer com Beckett "não tenho nada para dizer, mas só eu sei dizer isso". Ou com Cage, "não tenho nada para dizer e esta é a poesia de que necessito". O fato é que a gente caminha, como se soubesse para onde, mas caminha. Ladeados por nossos pares, reinventando o sentido da vida, amando e sendo amados, caminhamos. E paradoxalmente sabendo, como Gandhi, que "não há caminho para a felicidade. A felicidade é o caminho".
"O Homem Que Caminha" não pega atalhos, nem foge à vida.
Dilson Cunha
01.11.15
Um século depois da primeira publicação de A Metamorfose, de Kafka, a gente se pergunta: no que nos transformamos, nos transmutamos, nesses últimos cem anos?
Kafka ignora tanto Darwin quanto a ideologia do progresso ou qualquer outra utopia global. O mundo estava em guerra. E não era qualquer guerra. Sua Checoslováquia ainda estava sob o domínio do império Austro-Húngaro e era um daqueles imbróglios nacionalistas criados ainda em fins do século XIX e que ainda dão dor de cabeça ao mundo de hoje.
Mas em que nos transformamos? Que fizemos de nós depois de Gregor Samsa?
Kafka não viveu para ver o nazismo. Nem mesmo sua prodigiosa mente poderia supor do que homem era capaz. Gregor, misteriosamente, se metamorfoseou em um grande inseto, uma barata talvez. Hitler memorfoseou os judeus em ratos. Kafka não viu a Segunda Guerra Mundial. Beckett viu. Viu e deixou a todos Esperando Godot.
O pesadelo de Beckett é nos transformarmos em baratas sem nos metamorfosearmos em baratas, o que é pior. A barata para a barata não causa nenhum asco. Asco é sentirmo-nos baratas ainda que humanos. Do alto de nossa presunção, nem nos damos conta do asco que devemos provocar às baratas.
Kafka não viveu para ver a bomba atômica. Havia baratas também em Hiroshima e Nagasaki. E humanos. As baratas sobreviveram ao Little Boy do B-29 de quem dona Enola Gay deve ter dito: "meu garoto!". As baratas e Kokura. Essa, graças ao "sabe-se la por quê" céu nublado daquela manhã de agosto de 1945.
Entre mortos e feridos, o homem sobreviveu. Metamorfoseado, é verdade. "Depois de Auschwitz, a poesia não tem mais sentido", sentenciou o baratizado Theodor Adorno. O melhor retrato desse homem quem fez foi o ítalo-suíço Giacometti. Giacometti é de chorar. Seu homem é um errante, da bitola da estreiteza de seu caminho. Ele não mais olha para os lados. Não mais se dá o direito a distrações. É um esboço mal feito do 'homo sapiens'. Seu "Homem Que Caminha", símbolo da humanidade, é um tapa na cara do renascentista Davi de Michelângelo.
Mas Giacometti, apesar de tudo, era um otimista. Seu "homem" ainda está de pé. E caminha. Ainda há chão e futuro. Não era, claro, o mesmo chão do nipo-americano Fukuyama e sua crença no triunfo da "idéia ocidental". Tanto as alternativas soviéticas como também as democracias liberais se exauriram. A atual crise dos refugiados, mais que uma crise humanitária, é uma crise da humanidade. Desde o homo Erectus, o homem é um refugiado.
E o "Homem Que Caminha" anda. Como um hebreu. Quem o vê, vê um misto de certeza e dúvida, de desespero e esperança, de equilíbrio e instabilidade. É a imagem icônica representativa do Eterno Retorno de Nietzsche. É o enlameado Adão do Gênesis, um dia expulso do paraíso, voltando para casa, que não é mais, imagina, a caverna de Platão.
Giacometti e Kafka podem dizer com Beckett "não tenho nada para dizer, mas só eu sei dizer isso". Ou com Cage, "não tenho nada para dizer e esta é a poesia de que necessito". O fato é que a gente caminha, como se soubesse para onde, mas caminha. Ladeados por nossos pares, reinventando o sentido da vida, amando e sendo amados, caminhamos. E paradoxalmente sabendo, como Gandhi, que "não há caminho para a felicidade. A felicidade é o caminho".
"O Homem Que Caminha" não pega atalhos, nem foge à vida.
Dilson Cunha
01.11.15
fonte: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=810466242395539&set=a.419744141467753.1073741834.100002965120447&type=3&theater
Nenhum comentário:
Postar um comentário