sábado, 26 de setembro de 2015

A Idade Média do Brasil hoje



Le Goff, em um texto muito significativo para o entendimento das possibilidades de interpretação sobre a Idade Média, expõe as visões de Michelet sobre o medievo. Esse capítulo exemplar do medievalista francês – quem, acho eu, morreu antes de sua morte natural – tem me sido relembrado por imagens como essa. Não é a primeira vez que a vejo, certamente não será a última, e a cada vez que leio seu enunciado tenho maior convicção do erro ao qual ela nos remete. Um duplo erro: enquanto péssimos conhecedores do passado, e piores ainda enquanto capazes de reconhecer os problemas de nossa contemporaneidade.
Primeira, a Idade Média. A mensagem carregada por esses pixels na tela de um computador apresenta uma medievalidade pautada exclusivamente em um âmbito religioso, dando a entender que o a Igreja – ali expressa pelo processo de condenação de uma bruxa, ou seja, a Inquisição – foi capaz de manter um domínio sobre as decisões políticas do espaço que hoje conhecemos como Europa. Ora, que engano! Mesmo em períodos em que teóricos religiosos dedicaram suas linhas a defesa da autoridade papal sobre os imperadores e reis, não é consenso entre os medievalistas que esse objetivo tenha sido atingido.
A imagem carrega ainda a ideia de um período de completa penúria e violência causada pelo discurso religioso. Outro engano. É importante lembrar que a presença de um pensamento religioso – mais que de uma autoridade religiosa – orientou práticas como a do cuidado com os leprosos, ou as inúmeras casas de cuidados orientadas aos que se encontravam em situação de risco, sejam quais fossem suas mazelas– caso das ações de D. Dinis e a rainha Sta. Isabel, em Portugal. É também no sentido de ampliar o entendimento acerca de conflitos religiosos que podemos lembrar o fato de a Corte de Alfonso X de Castela, a qual manteve o cuidado de abrigar judeus e muçulmanos em sua formação e mesmo as cidades possuíam bairros para as pessoas com essas orientações religiosas – apesar dos tributos pagos para que ali permanecessem.
Segundo, a contemporaneidade. Ao olhar para a Idade Média e pinçar o aspecto religioso como determinante e provocador de calamidades, a imagem não apenas provoca o desentendimento acerca da Idade Média, mas ainda induz aquele que a vê a atribuir apenas ao passado os conflitos que vivemos em nossa contemporaneidade. Ora, mais de quinhentos anos de passaram desde o fim daquele período histórico (marco didático), será que o pensamento medieval é responsável pelo que vivemos hoje? Ou seriamos nós, enquanto sociedade, que, passados os cinco séculos que os separam dos medievais, ainda não fomos capazes de avançar em um entendimento que nos habilite a viver mais como humanos, e menos em uma multiplicidade de binômios?
Em resumo, a imagem presta um duplo desserviço: deturpa o conhecimento sobre a Idade Média, e ainda nos isenta da responsabilidade que nós, contemporâneos, temos sobre a atual sociedade. Religiões e políticas passaram por profundas modificações desde o medievo, e qualquer comparação simplista apenas nos deixa mais distante de analisarmos e entendermos os nossos problemas, sejam religiosos, políticos ou o perigoso misto da bancada evangélica.
OBS: Medidas tomadas essa semana pelo Japão e Austrália de retirar o ensino de humanidades em detrimento de conhecimentos mais significativos para a sociedade – no entendimento do governo daqueles países – apenas ampliarão erros como o dessa imagem. Instrução sem reflexão não passa de automação de humanos.
* É preciso esclarecer que esse pequeno texto está longe de resolver os problemas e o debate que essa imagem suscita. Essas palavras não são apenas apontamento mais do que superficiais de um debate que exigiria muitas páginas mais.

https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1070776762935538&set=a.303354933011062.83732.100000096745766&type=3&theater

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A Idade Média do Brasil hoje



Le Goff, em um texto muito significativo para o entendimento das possibilidades de interpretação sobre a Idade Média, expõe as visões de Michelet sobre o medievo. Esse capítulo exemplar do medievalista francês – quem, acho eu, morreu antes de sua morte natural – tem me sido relembrado por imagens como essa. Não é a primeira vez que a vejo, certamente não será a última, e a cada vez que leio seu enunciado tenho maior convicção do erro ao qual ela nos remete. Um duplo erro: enquanto péssimos conhecedores do passado, e piores ainda enquanto capazes de reconhecer os problemas de nossa contemporaneidade.
Primeira, a Idade Média. A mensagem carregada por esses pixels na tela de um computador apresenta uma medievalidade pautada exclusivamente em um âmbito religioso, dando a entender que o a Igreja – ali expressa pelo processo de condenação de uma bruxa, ou seja, a Inquisição – foi capaz de manter um domínio sobre as decisões políticas do espaço que hoje conhecemos como Europa. Ora, que engano! Mesmo em períodos em que teóricos religiosos dedicaram suas linhas a defesa da autoridade papal sobre os imperadores e reis, não é consenso entre os medievalistas que esse objetivo tenha sido atingido.
A imagem carrega ainda a ideia de um período de completa penúria e violência causada pelo discurso religioso. Outro engano. É importante lembrar que a presença de um pensamento religioso – mais que de uma autoridade religiosa – orientou práticas como a do cuidado com os leprosos, ou as inúmeras casas de cuidados orientadas aos que se encontravam em situação de risco, sejam quais fossem suas mazelas– caso das ações de D. Dinis e a rainha Sta. Isabel, em Portugal. É também no sentido de ampliar o entendimento acerca de conflitos religiosos que podemos lembrar o fato de a Corte de Alfonso X de Castela, a qual manteve o cuidado de abrigar judeus e muçulmanos em sua formação e mesmo as cidades possuíam bairros para as pessoas com essas orientações religiosas – apesar dos tributos pagos para que ali permanecessem.
Segundo, a contemporaneidade. Ao olhar para a Idade Média e pinçar o aspecto religioso como determinante e provocador de calamidades, a imagem não apenas provoca o desentendimento acerca da Idade Média, mas ainda induz aquele que a vê a atribuir apenas ao passado os conflitos que vivemos em nossa contemporaneidade. Ora, mais de quinhentos anos de passaram desde o fim daquele período histórico (marco didático), será que o pensamento medieval é responsável pelo que vivemos hoje? Ou seriamos nós, enquanto sociedade, que, passados os cinco séculos que os separam dos medievais, ainda não fomos capazes de avançar em um entendimento que nos habilite a viver mais como humanos, e menos em uma multiplicidade de binômios?
Em resumo, a imagem presta um duplo desserviço: deturpa o conhecimento sobre a Idade Média, e ainda nos isenta da responsabilidade que nós, contemporâneos, temos sobre a atual sociedade. Religiões e políticas passaram por profundas modificações desde o medievo, e qualquer comparação simplista apenas nos deixa mais distante de analisarmos e entendermos os nossos problemas, sejam religiosos, políticos ou o perigoso misto da bancada evangélica.
OBS: Medidas tomadas essa semana pelo Japão e Austrália de retirar o ensino de humanidades em detrimento de conhecimentos mais significativos para a sociedade – no entendimento do governo daqueles países – apenas ampliarão erros como o dessa imagem. Instrução sem reflexão não passa de automação de humanos.
* É preciso esclarecer que esse pequeno texto está longe de resolver os problemas e o debate que essa imagem suscita. Essas palavras não são apenas apontamento mais do que superficiais de um debate que exigiria muitas páginas mais.

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