A segunda imagem na foto é a de meu primeiro quadro em tinta acrílica,
de quando comecei a aprender a técnica em 2009. Lembro que enfrentei inúmeros
questionamentos a respeito da escolha da imagem: algo obscuro, uma Igreja, um
cemitério, uma forca...
Gostei da imagem e a escolhi, dentre muitas outras opções. O objetivo
era aprender a pintar em tela, e para primeiro quadro, pareceu-me um bom
desafio.
Hoje me senti compelida a escrever a respeito, depois da notícia da
selvageria que destruiu obras de arte de valor inestimável para a humanidade no
museu da cidade de Mossul, no norte do Iraque, por fundamentalistas religiosos
(primeira imagem).
É claro que não há comparação entre as obras destruídas no Iraque e meu
primeiro quadro em tinta acrílica, pintado em 2009. Mas há algo em comum entre
essas obras: todas foram destruídas sob argumentação religiosa.
Sim, esse quadro inofensivo foi destruído. Eu o guardava como uma
relíquia, já que se tratava do primeiro de uma série que vim a produzir. A arte
me ajudou em diferentes aspectos: emocional, social, criativo, entre muitos
outros. Era um lembrete de que eu poderia ir sempre além, alcançar novos
horizontes e superar o medo do desconhecido. Creio que a maioria das pessoas
compreende este sentimento com relação a determinados objetos que lhe são
caros, não pelo valor de mercado que se lhes atribui, mas pelo valor
sentimental e subjetivo que eles representam em uma questão pessoal.
Certo dia, um amigo insistiu para que eu lhe desse de presente este
quadro, exatamente pelo que ele representava: meu primeiro quadro. Apesar da
relutância interior, pesei o valor do amigo a despeito do valor do quadro, e
presenteei-lhe. Por muito tempo encontrei o quadro em um lugar de destaque na
sala de jantar da casa deste meu amigo, e me alegrava ver não a imagem ou a
peça sendo valorizada, mas minha pessoa, bem como minha constante recordação na
casa de um amigo querido.
Até que um dia, em um lugar público, meu amigo contou-me, sem o menor
remorso, que uma conhecida autodenominada missionária, ao visitá-lo deu de cara
com meu quadro na parede e atribuiu-lhe uma presença supostamente demoníaca,
por causa do teor da imagem retratada nele. Diante desta manifestação, e a
pedido da religiosa, meu amigo entregou-lhe o quadro, para que fosse destruído.
No momento em que ele me contou, não sabia se ria ou chorava. A única
lembrança que tenho do quadro é a imagem da foto – pelo menos, a mania de
fotografar tudo o que faço me deu uma vantagem desta vez -, parecia-me
inconcebível tal ato e eu não sabia explicar o porquê deste sentimento que se
instalou dentro de mim que representava tanta tristeza e tanta indignação.
Eu não sabia até o dia de hoje, quando me deparei com a outra imagem, da
destruição das obras de arte no Iraque. Ao ler um comentário de outro amigo,
referindo-se à matança de pessoas, compreendi uma frase de Heine que li há
muito tempo atrás: “Onde se lançam livros às chamas, acaba-se por queimar
também os homens” (prefácio de ‘Fahrenheit 451’ – Ray Bradbury – p.20). A arte
é muito mais do que objetos lançados ao mundo, fruto do trabalho humano. A arte
é a extensão do homem, de sua criatividade, é a produção cultural do ser humano,
a maneira como o ser humano se eterniza e faz história. Quem é capaz de destruir
a produção cultural humana, é capaz de destruir um ser humano.
Não é exagero pensar que quando uma pessoa se levanta para queimar
livros, cds, imagens ou qualquer produção artística, sob o argumento que for,
poderá não distinguir o valor de uma vida quando sua argumentação chegar a âmbitos
equivalentes. Quem é capaz de queimar um quadro, pode massacrar uma pessoa,
seja com palavras ou atitudes, seja física, emocional ou espiritualmente.
As religiões do mundo não possuem base suficiente para respaldar atos
como os descritos acima. Tais atitudes revelam o perigoso fundamentalismo que
não enxerga além de seus estatutos, e que por isso os tem acima do valor da
vida humana.
Essa é a razão porque senti urgência em deflagrar atos como este, não
menosprezando as vidas que se perdem por causa da perseguição religiosa, muito
pelo contrário, alertando para o fato de que atitudes como as descritas aqui
são o prenúncio de que coisas muito piores podem estar por vir.
Não sei se aquele amigo compreende a profundidade do que aconteceu, e
não o culpo por isso. O que me entristece é o descaso para com as implicações
de atos tão trágicos como estes.
Angela Natel
27/02/2015
Nenhum comentário:
Postar um comentário