Angela Natel
2.
Você se acostuma
Hoje acordei com o corpo pesado, talvez
porque finalmente consegui relaxar, após uma semana de substituição de aulas na
Faculdade, meu siso nascendo, dor de garganta, febre e, para fechar a semana
com chave de ouro: Show do Guns N’ Roses em Curitiba (debaixo de chuva).
Ainda cambaleando, me arrastei para fora da
cama, obrigando-me a acordar. Dor pelo corpo, peso na cabeça, sono sem fim. Tem
coisas que a gente passa e nem sabe bem o porquê, então ouve alguém dizer: ‘Você
se acostuma’. Essa frase se encaixa em qualquer situação, talvez como um tipo
de prêmio de consolação, talvez não. Só sei que já ouvi isso muitas vezes, de
pessoas e em lugares bem diferentes.
Hoje é primeiro de Abril, o famoso ‘dia da
mentira’, em que as pessoas se dividem nas opiniões e manifestações pelas redes
sociais. Há os que aproveitam e brincam à bessa. É divertido. Você se acostuma
rápido. A mentira é tida como um ato de liberdade humana, parte da natureza. Há
os que levantam a bandeira contra o ‘pai da mentira’, num discurso farisaico de
que esse dia não será entregue em suas mãos. Você se acostuma com os versículos
bíblicos que exaltam a verdade e condenam a mentira, citados aos montes em sua timeline.
Há a ação dos ‘justiceiros’, que ainda mostra
resquícios nas menções de falta de postes diante das injustiças. Você se
acostuma a ver as imagens de pessoas amarradas como animais nesses postes, de
sangue no asfalto, imagens de violência para pagar pela violência. Você se
acostuma.
E agora a febre do momento é a indignação contra
ideia que por muito tempo se manteve velada a respeito da culpabilidade das
vítimas de estupro. Você se acostuma a pensar e a repetir o discurso, sem
pensar em suas implicações, sem levar em conta o ser humano dentro de cada
casca, você simplesmente se acostuma.
E o princípio atinge as camadas mais pessoais
da minha vida, quando as pessoas fazem seus comentários preconceituosos do tipo
‘ela só quer aparecer’, ou ‘é bipolar’ após um comentário ou exposição de minha
parte. Você se acostuma.
Você se acostuma a ser cobrado por coisas que
não são fundamentais na vida, se acostuma a viver tentando suprir as
expectativas da maioria, a trabalhar para preencher vazios cuja procedência
nada nem ninguém consegue explicar.
Você se acostuma com a injustiça, com a falta
de misericórdia, com dois pesos, duas medidas, se acostuma a procurar sempre
uma explicação plausível prá tudo, sem levar em conta a singularidade do momento,
das pessoas, das circunstâncias. É fácil se acostumar com bordões numa época
como a nossa: “Deus me falou”, “eu profetizo na tua vida”, “tudo vai acabar bem”,
“tudo coopera para o seu bem”, justificando nossos desejos, anseios, esperanças
e o peso de nossa alma em palavras vazias de sentido, pois não expressam mais o
mesmo de suas fontes.
E você se acostuma a receber tudo pronto,
seja da TV, aula ou microondas, sem questionar o que se ouve nos púlpitos e
palanques da vida. Você se acostuma a não ser compreendido e se cala, num mar
de desilusão.
Hoje
li que “Pior do que contar uma mentira é viver
uma mentira” (Hermes Carvalho Fernandes), e fui repentinamente chacoalhada por dentro desse
marasmo interior. Não quero e não vou me acostumar.
Não vou me acostumar a ser pau mandado, nem papagaio
num mar de discursos desconexos. Não vou me acostumar a ser parasita religioso,
sugando ideias, doutrinas, vida dos que bebem diretamente das fontes da
salvação.
Não quero e não vou me acostumar com a injustiça,
com os rótulos, com o descaso diante da desumanidade de quem pode e deve se
posicionar. Não vou me acostumar a ser silenciada só porque acham que quero
aparecer quando manifesto opinião, quando coloco minha posição ou decido me expor.
Não sou vítima das situações, quero ser agente coerente e responsável, que olha
o nu e decide agir em favor, não contra, que entende que a “ira do homem não
opera a justiça de Deus” (Tiago 1:20).
Não vou me acostumar com cobranças inúteis que não
me ajudam a melhorar, só acrescentam mais peso sobre meus ombros, um peso morto
que não estou disposta a carregar.
Como se vê, nem sempre acordo com o melhor
dos humores, e num dia pesado como este, em que meu corpo não responde tão
rápido como eu desejaria, quando o cansaço decide mostrar sua verdadeira face,
quando me sinto exausta de tentar dar tanta explicação, decido não me acostumar
com nada disso, e melhor do que falar a verdade quero vivê-la, nem que prá isso
eu tenha por companheiro um eterno desconforto.
Angela Natel
Abril de 2014
mais em https://www.facebook.com/pages/Angela-Natel/137128436426391?ref=hl
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