Então, "normal" tem que ser redefinido pela turbulenta fase que caracteriza a formação de nossos valores e estruturas básicas de nosso caráter.
Vou dar alguns exemplos de momentos da minha própria infância e adolescência:
1. Na Igreja tudo era muito mecânico, artificial. Eu me esforçava para obter reconhecimento do meu pai em tudo o que eu fazia. Participava assiduamente das escolas bíblicas, teatros, gincanas e demais atividades promovidas pela comunidade eclesiástica, mas não fazia a mínima idéia do que fazer para ser salva, ou se era preciso fazer algo, já que não me lembro de ter ouvido qualquer coisa a respeito.
2. Foi na quarta série que conheci uma grande amiga na época, D., e me apaixonei pela primeira vez por dois garotos ao mesmo tempo, J. (um loiro cheio de sardas no rosto e todo certinho) e G. (um moreno da “turma dos rebeldes” da sala). Com J. cheguei a trocar fotos 3x4 e até ganhei dele um ovo de páscoa. Ele me acompanhava até parte do caminho para casa de mãos dadas, mesmo com minha irmã por perto (ela ía me buscar a pé todos os dias). Nós dois costumávamos ir para detrás da escola para “namorar”, mas o máximo que fizemos foi trocar beijos no rosto (acredite, é verdade). Já com G. o namorico se restringia a demonstrações de agilidade em público e sorrisos para me impressionar. Pena que as coisas mudaram, era tão divertido...
3. Em minha formatura de quarta série ganhei uma caneta prateada com um coração na ponta como prêmio de melhores notas da turma. Era o primeiro de muitos nesse sentido.
4. Na minha festa de aniversário de onze anos ganhei o que tinha pedido: uma máscara de monstro. Nesse caso era de lobisomem. Lembro que fiquei tão feliz que até foto fiz questão de tirar.
5. Mudei de escola porque a anterior na época só oferecia parte do ensino fundamental. Fui parar na Escola Estadual Polivalente de Curitiba, onde estudei da quinta até a oitava série. Lá conheci minha grande amiga L.. Estudamos na mesma turma da quinta série e só voltamos a estudar juntas novamente nos três primeiros anos da faculdade de Letras, dez anos mais tarde. Mesmo assim, a partir deste ano, nunca mais perdemos o contato, e até hoje nos correspondemos via e-mail, quando não estou em Curitiba para nos encontrarmos.
6. Foi na quinta série também que conheci J., da minha sala, que passou, pelo menos quatro anos me cortejando.
7. Praticava pequenos furtos com minha irmã. Roubávamos chocolates e yogurtes de um supermercado que ficava próximo ao colégio onde minha irmã estudava, e eu ía lá quando ela precisava fazer trabalhos no contraturno.
8. Havia uma menina repetente na minha sala que vivia me humilhando publicamente, me chamando de ‘ferrugem’ e tentando me provocar. Foi bem legal quando, depois de ter contado prá minha irmã, que na época estudava num colégio próximo ao meu e que tinha fama de ‘poderoso’, ela foi me buscar e intimou a menina na frente de todo mundo, ameaçando-a. No dia seguinte a menina veio toda constrnagida me pedir desculpa e nunca mais me incomodou. Não sei se minha irmã seria capaz de bater naquela menina, ou chamar a turma dela para fazê-lo, mas sempre me senti segura perto dela, que cuidava de mim como uma segunda mãe.
9. Cheguei a ler toda a Bíblia aos 11 anos pela primeira vez e comecei a assistir semanalmente estudos bíblicos transmitidos pela televisão em forma de aulas por uma missionária chamada Valnice Milhomens. Me alimentei como nunca da Palavra de Deus. Nesta época minha mãe havia fugido de casa e acabou encontrando uma senhora Menonita que lhe falou do amor de Deus.
Depois de se entregar a Cristo, minha mãe voltou para casa, e foi quando conheci o poder de Deus em capacitar alguém a perdoar e a viver uma vida de sacrifício e santidade.
10. Sempre tentando provar minha capacidade para meu pai, consegui, no último bimestre do ano letivo um boletim com um 9,0 e o resto tudo 10,0. Lembro a cara de meu pai quando mostrei para ele, e a pergunta que derreteu meu sorriso: “Por que esse 9,0?” Educação Física nunca foi o meu forte, mas eu realmente tinha me esforçado ao máximo. Na escola, todo final de bimestre havia um concurso de melhores notas da escola, chamado “Os cobras”. Até hoje guardo muitos daqueles certificados que ganhei. Neste ano consegui o de melhores notas do colégio todo (de quintas a oitavas séries), com direito à medalha e tudo o mais, mas senti como se não tivesse sido suficiente.
10 momentos que, de alguma forma, marcaram a base da vida que tenho hoje. Atualmente luto para arrancar de mim essa necessidade de reconhecimento, amor e aceitação.
Ninguém teve uma infância "normal".
Um comentário:
Sempre quis escrever sobre a infância sob este ângulo. Sempre tememos em pernsar que a infância é normal. Mas em certos aspectos, não é não. Sempre há algo que nos deixa a margem, mesmo que em atitudes infantis e nunca premeditadas. Parabéns pelo texto. Abraços
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